Parafraseando Chico, “quando nasci veio
um anjo safado, um chato dum querubim, e decretou que eu estava predestinado a
ser todo ruim. Já de entrada minha estrada entortou...” e eu cheguei ao mundo
pesando três quilos e seiscentos gramas e com cinquenta centímetros.
Quando vi a luz pela primeira vez achei
que havia morrido, aqui fora estava muito frio, ouvia zumbidos, avistava por
entre as frestas dos olhos semicerrados imagens distorcidas. Não pensei duas
vezes, estou morta. Primeiro eu vi um corredor bem longo e escuro, depois
apareceu àquela luz que se aproximava sorrateiramente. Até que veio o frio e as
imagens distorcidas. Morri, e eu que teria tanta coisa pra viver. Um abraço da
minha mãe para receber, carinhos nos pés e mãos, afagos na cabeça. Eu ainda nem
havia aprendido a andar de bicicleta. E os bombons de chocolates? Não havia
experimentado nenhum, e nem papinha de Mucilon ou Cremogema. Não poderia gozar
das cócegas no suvaco ou na barriga. Caraca! O meu primeiro beijo, não poderia
degustar o friozinho na barriga e tontura causadas por essa emoção.
Apesar da dificuldade de nos entendermos, a
linguagem usada era ininteligível, o recado foi dado e ele cessou com o espancamento. Não
posso negar que continuo não concordando muito com essa mania de nos
recepcionarem na base do espancamento. Nem sequer “um bom dia”, um “como vai?”, o
sujeito chega dessa viagem enfadonha e já tem de tomar uma chibatada na bunda. Não é só porque se pode pendurar o indivíduo pelos pés que é lícito espanca-lo.
Eu já estava perdendo a paciência de
ficar de ponta cabeça quando avisei que deveriam me colocar de pé
imediatamente. E imagine só, sentia que estava perdendo os sentidos, não
conseguia raciocinar sobre mais nada, meu sangue havia vindo parar todo na
cabeça, e já sentia formigões pelos pés e mãos quando finalmente me colocaram
numa posição confortável. Enfim, eu começava a gostar dessa coisa de nascer.
Senti coceguinhas nos pés e pescoço, era a enfermeira limpando uma gosma
fedorenta que me cobria.
Mas, como tudo que é bom dura pouco, não
demorou muito pra eu perceber que Deus deveria estar numa vibe muito bem humorada na ocasião da escolha do meu anjo da guarda
e deve ter achado muito engraçado nomear um grandíssimo filho de uma puta pra
me fazer companhia. Essa foi uma, das suas grandes piadas, que realmente me
tirou do sério. Ter um querubim velhaco por companhia não me agradou nem um
pouco.
Vivia perdendo os chinelos e apanhando
por conta disso. Acho que assim que eu tirava as sandálias o querubim Tonto às
pegava e as escondia. Tonto me empurrava da bicicleta, da árvore, na poça
d’água, colocava pregos por onde eu iria passar, rasgava e quebrava as coisas,
sussurrava mentiras através da minha boca. Tornava minha vida um tormento.
Tonto não era só gozador, era também sádico, estimulava minha avó e meus amigos
a me espancarem e com certeza deveria achar tudo isso uma delícia.
Ignorando a existência de um querubim
malandro em minha vida eu até poderia pensar que metia em problemas porque
nasci com dom pra fazer besteiras, mas pode ser que passei a fazer bobagens por
conta do estigma que minha família lançou sobre mim. Meus avós e tios achavam
que era uma maquina de fazer bobagens. E só me restou imaginar que estaria
predestinada a “ser toda ruim”, e pasmem, eu era estimulada a pensar isso, eu
era uma garota problema e ponto final, era uma “garota interrompida”.
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