segunda-feira, 15 de junho de 2015

Carne com bastante osso



Resultado de imagem para prato vazioNa nossa casa eram servidas somente duas refeições, o almoço e jantar. Pela manhã só tomávamos café preto, eventualmente eu podia comer pão. Contudo, como havia dinheiro somente para meio pão apenas eu comia. A gente só comia carne uma vez por semana. Então, no sábado, por volta das nove horas, meu avô apontava numa esquina próxima a nossa casa trazendo um pacote envolto num jornal amarrado com barbante e sujo de sangue. Era um pedaço de carne com bastante osso. Seria mais justo dizer que era osso com o que sobrou da carne, quase comumente um pedaço de costela. Minha avó o temperava somente com um pouco de coloral, pimenta de cheiro e cozinhava boiando em água. Eram uns dez litros de água para meio quilo de osso. Parte do caldo era reservado para fazer o pirão escaldado que tanto meu avô gostava. Depois que o cozido esfriava se formava uma espessa camada de gordura amarela que encobria tudo aquilo estava submerso. Caso esquecêssemos um garfo no recipiente seria possível remove-lo juntamente a camada inteira de gordura em forma de pirulito apenas puxando o garfo pelo cabo.
A visão, o sabor e cheiro dessa comida me embrulhavam o estômago. Quando não me restava outra opção, que não me servir dessa iguaria, eu permanecia por horas com o forte sabor de sebo encerrado na boca. Como não fosse suficientemente torturante ser obrigada a ingerir aquele alimento tão mal preparado minha avó ainda removia a gordura que boiava na panela e guardava para “temperar” o feijão no decorrer da semana. É quase desnecessário dizer que eu odiava comer esse e outros pratos que nos eram servidos. Entretanto, era comer aquilo ou ficar com fome. Não eram somente os alimentos que eram ruins, era a cozinheira, primordialmente, o pior ingrediente. Ela teria o dom de tornar um filé mignon, uma lagosta ou camarão alimentos indesejáveis.
Por isso, quase todos os dias eu fugia de casa no horário das refeições. Naturalmente, eu ia para algum lugar onde eu pudesse comer alguma menos ruim que as gororobas servidas por minha avó. Então, minutos antes das refeições eu chegava à casa dos vizinhos. Ficava de pé com as mãos voltadas para trás, a direita segurando o cotovelo esquerdo e a esquerda segurando a parte de trás da saia. Fazia aquela cara de criança faminta – ou melhor, eu tinha cara de criança faminta – até que a dona da casa se comovia e me servia. Lamentavelmente, nem sempre eu conseguia fugir na hora das refeições ou a tática funcionava. Entretanto, quando ela funcionava eu comia num desespero e numa pressa de chamar a atenção. Cada refeição que eu fazia fora de casa parecia que seria a ultima. Eu comia muito, comeria tanto quanto me servissem.
Dentre as vizinhas, que se compadeciam da minha chantagem emocional, de uma em especial eu nunca esquecerei. Era uma senhora um tanto desapegada, generosa, farta e, na mesma medida, mesquinha, hipócrita, traiçoeira, simulada e cruel.  Ela era suficientemente generosa ao ponto de quase sempre me oferecer e servir refeições e, portanto, ela era a minha escolha predileta. No entanto, sua generosidade era invariavelmente acompanhada de boas seções de humilhações. Essa senhora, Dona Aparecida, jamais deixava de fazer comentários constrangedores enquanto eu comia, “Come devagar que a comida não vai fugir não”, “Parece que nunca viu comida”, “Come bicha rea. É mesmo uma morta de fome!” e ainda hoje, volta e meia, alega que eu vivia “para morrer de fome” e que nem pareço “aquela”, “daquele tempo”.
Embora ainda fosse uma criança, eu percebia o tom pejorativo e ofensivo de alguns dos seus comentários. De qualquer forma, eu acreditava que me humilhar era seu direito. Bem, aceitando ou não, compreendendo ou não os ataques, eu tinha mais fome do que orgulho. Então, eu os ignorava ou os engolia tendo em vista poder matar a fome ou simplesmente poder experimentar algo diferente.
Ao retornar para casa e encontrar minha avó ela perguntava se eu não queria almoçar, eu dizia que não, ela desfilava uma tira de xingamentos, mas acabava me deixando em paz depois de me colocar diante de uma porção de louças para lavar ou ir irritar meu avô com um comentário qualquer.
Bem, como disse anteriormente eu não a esqueço, e jamais irei esquecer essa senhora que “generosamente” matava minha fome, porque ela continuou me alimentando e me humilhando tempo suficiente para eu perceber que comida nenhuma pagaria por aquele tipo de ultraje. É óbvio que não havia generosidade no seu gesto, ela me alimentava unicamente com a finalidade de me expor ao ridículo, de ter alguém para poder espezinhar.
Ela era uma criatura infeliz, uma alcoólatra fracassada, insatisfeita com a vida, que precisava humilhar quem quer fosse para que pudesse se sentir melhor. Ela acordava para beber e dormia porque era derrubada pela bebida. Não trabalhava fora e ainda assim não cuidava satisfatoriamente dos filhos ou da casa, mesmo tendo empregada doméstica. Sem contar que vivia num casamento infeliz. Apesar de o alcoolismo ser uma doença, de um casamento bem sucedido não depender somente da vontade e do empenho de um dos cônjuges e de uma casa arrumada não ser garantia de sucesso de ninguém, o seu fracasso não pode ser usado para justificar o seu caráter leviano. No entanto, no final das contas, tudo é uma relação de causa e consequência. Eu até entendo que ela não seria completamente responsável pelo tipo de vida que levava. Agora é fato que eu, que sequer teria alguma gerência sobre a minha vida, teria alguma responsabilidade pelos infortúnios que ela passava.   
No entanto, vamos considerar que, talvez, ela tentasse ser uma pessoa melhor me dando um bocado de comida. Mesmo assim, seu caráter mesquinho falava mais alto. Eu sempre era servida depois que todos fossem servidos e quando sobrava comida. Quando não sobrava me restava ficar apenas os assistindo comer. Quando ela fazia aniversários em sua casa eu nunca, jamais, era convidada. Mesmo assim, excepcionalmente, quando eu fugia da minha avó – que me proibia de “ficar pelas biqueiras” das casas enquanto aconteciam festas para as quais eu não havia sido convidada – e era vista me esgueirando pelo portão alguém acabava me convidando a entrar.
Embora eu acompanhasse de perto todos os preparativos – da confecção dos convites a preparação das lembrancinhas e comidas – apesar de me insinuar bastante eu nunca era convidada para as festas. Mesmo assim, eu partilhava da mesma ansiedade que os convidados e os aniversariantes sentiam. Minha ansiedade atingia o nível máximo no anterior a festa, quando eu perdia o sono pensando em tudo que poderia acontecer. Quando finalmente era vencida pelo sono os meus sonhos eram povoados por balões, chapeis de festa, língua de sogra, refrigerantes e muito bolo. No seguinte acordava cedo, reservava minha melhor roupa e, pouco antes das dezessete horas, eu lavava o rosto, passava um pano molhado por entre as axilas, penteava desajeitadamente o cabelo, me vestia e ficava na expectativa de ser chamada para desfrutar um pouco da diversão e das guloseimas. Algumas vezes eu não conseguia fugir aos olhares da minha avó e era obrigada a me recolher mais cedo. O que me levava a dormir era o cansaço de tanto chorar.
Quando eu conseguia ser mais esperta que minha avó, ou quem sabe, quando ela propositalmente me deixava ser mais esperta, eu acabava indo parar nas pistas de dança repletas de balões, meninas e meninos dançando ao som do Balão Mágico, Xou da Xuxa, comendo docinhos e tomando refrigerante. Na hora dos parabéns eu me encostava bem à mesa para garantir que eu ganharia uma lembrancinha e me fosse servido um pedaço de bolo. Quase sempre eu era a última a ser servida e receber a lembrancinha. Normalmente as lembrancinhas eram confeccionadas somente para aqueles que haviam sido formalmente convidados.
Bem, o tempo passou, as coisas mudaram, eu mudei. Mas, lamentavelmente, Aparecida não mudou muito. As experiências pelas quais passou – grande parte delas muito ruins – não a ensinaram nada. Ela continua a mesma pessoa traiçoeira, simulada e escrota. Certa ocasião, enquanto eu dirigia pelo bairro onde morávamos – ela continua morando na mesma casa onde eu passei por tantas humilhações – em busca de uma imóvel para comprar eu a encontrei bebendo sentada na calçada da casa à frente da sua.
Dirigia devagar procurando placas de venda quando ela me avistou e me convidou para descer do carro e lhe falar. Atendi ao seu pedido e fui me sentar ao seu lado. Tão logo me sentei ela me solicitou que lhe pagasse uma cerveja. Mandei lhe trazer duas e enquanto ela alimentava seu vício a ouvia dissertando pela enésima, agora para duas pessoas que eu acabava de conhecer, como havia sido a minha infância, de como era magra, descuidada, de como ninguém achava que eu iria “dar pra alguma coisa”... Ela não economizava na dramaticidade. Falava que eu não tinha o que vestir, que vivia nas casas em busca de comida e me escondendo atrás portas com medo de tudo. Ressaltava que, porém, atualmente não havia quem dissesse “quem fui eu”.
Talvez a irritasse o fato de não me causar constrangimento algum as revelações a cerca da minha história de miséria e humilhações. Então, ela repetia de forma jocosa algumas histórias da minha infância e adolescência e da minha relação com minha avó. Eu apenas ria. Infelizmente, ela não compreende que ser muito pobre ou nascer numa família desajustada não é uma escolha, é uma fatalidade. Já, passar a vida inteira sendo uma pessoa medíocre ou mau caráter aí sim é uma escolha. Uma péssima escolha, vale ressaltar!
Era visível a satisfação que ela sentia ao relatar a minha antiga condição. A mim estava claro o quanto era doloroso para ela perceber que nada do que ela dizia me atingia e que tudo aquilo que passei não me assombrava mais. Eu percebia o quanto era difícil para ela perceber que eu não era mais aquela pessoa indefesa e vulnerável e que ela não poderia usar sequer seu poder econômico para me humilhar. Pelo contrário, finalmente eu podia retribuir a “generosidade” que ela teve comigo.
Enquanto conversávamos pedi para uma das garotas que lhe fazia companhia antes da minha chegada e que eu acabara de conhecer para ir pegar um sanduiche e um refrigerante para mim na mesma lanchonete onde foi comprada a cerveja. Aparecida me perguntou se eu poderia pedir outro sanduíche para ela. Orientei a moça para que trouxesse dois sanduíches e um refrigerante. 
O pedido chegou e continuamos conversando, já que todas as vezes que esbocei movimento para ir embora ela insistia para que eu ficasse mais um pouco e, como com tempo livre naquela tarde, acabei cedendo a pressão. Também devo confessar que a situação estava bem divertida e eu daria um braço para permanecer ali e ver até onde aquele conversar iria nos levar. Não me incomodava sua presença, muito menos a sua conversa sobre o meu passado e suas perguntas sobre minha condição atual. Já as minhas revelações a deixavam visivelmente contrariada, a incomodava saber que eu estava bem. A naturalidade com que falava sobre as coisas que fazia e que havia feito e até mesmo sobre meu crescimento pessoal e profissional lhe causava um despeito sem tamanho. Até o tom da sua voz denunciava o desconforto que ela sentia. Mesmo assim ela não o parava de me fazer perguntas a meu respeito.
Quando finalmente a conversa se esgotou e conclui que ali nada mais me interessava resolvi partir. Agradeci pela companhia agradável de todas e me despedi. Caminhei até ao meu carro, liguei o motor e, finalmente, fui arrumar o retrovisor. Ao olhar em direção ao local onde estávamos sentadas pelo espelho do retrovisor a avistei com o dedo médio em riste. A encarei, sorri mais uma vez e movimentei a mão direita dando adeus. Conclui o aceno dizendo “Até mais Aparecida”. A sua expressão facial jamais poderá ser descrita. Apenas me arrisco dizer que revelava um misto de desapontamento, vergonha e medo. Fui embora rindo muito. Nunca mais a vi.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Meus três abortos

(Ou como a vida pode ser diferente para as mulheres que  decidem seguir em frente)

 Por: Uma Das Lutas (anônima)

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“Meu corpo, minha escolha”

A DOR


Aos 17 anos, engravidei pela primeira vez. Apaixonei-me perdidamente por um fotógrafo bem mais velho do que eu, ele devia ter 38 na época, extremamente sedutor e mulherengo. Logo de cara, nossa relação foi abusiva. Ele me manipulava, me fazia ficar próxima de uma das filhas dele (e me afeiçoei à criança), me expunha, era possessivo, mas sem dar pinta para quem estava fora da relação. Eu estava muito envolvida, muito entregue, e não percebia que esse era um modus operandi, era uma forma de controle. Um dia, em casa, passei muito mal. Enjoos, cólicas… fui parar numa emergência achando que era problema na menstruação. Estava grávida. Três semanas. Fiquei sem ação. Desde novinha eu imaginava como seria quando eu tivesse filhos, e fantasiei como seria ter aquele filho com ele. Eu liguei pra ele para contar, cheia de sonhos, expectativas de uma mocinha apaixonada, ainda com pretensões românticas… Ele falou categoricamente e que aquele filho poderia ser de qualquer um. Ele não iria assumir nada e eu era “uma vagabunda que saía com qualquer um”. E mais, não me daria um tostão para eu tirar um filho que não era dele. Claro que não era verdade, eu só estava com ele, mas ele estava usando uma das muitas armas que o patriarcado oferece: o aborto masculino. Ali, ele abortava aquele filho, sem a menor dor ou problemas. Para mim, os trâmites foram muito diferentes.
Eu queria aquele filho. Então, fui conversar com as minhas amigas da época. Elas simplesmente me destroçaram. Expuseram toda a violência da minha relação com o cara, ridicularizaram o fato de que eu ainda pudesse querer ter aquele filho, que seria uma ligação eterna com ele, que aquilo ia estragar minha vida (eu não acreditei nisso, nem lá, nem hoje em dia, esse nunca seria o motivo), que minha mãe nunca ia me perdoar (elas não sabiam que minha mãe era feita de companheirismo). Percebendo que não tinha jeito, que eu ia ser julgada eternamente (assim que me sentia), como muito medo, eu decidi que precisava tirar aquele feto de dentro de mim. Tentei com o Citotec, mas não adiantou, só tive uma hemorragia, morri de dores, mas a quantidade que me recomendaram não era o suficiente para que desse certo. Fui parar num hospital público e tive que ouvir absurdos religiosos de uma médica (que ela sabia que eu tinha tomado algo para abortar): que eu ia parar no Inferno, que ela estava cansada de ver vadias como eu engravidarem e não assumirem a responsabilidade, etc. etc... Ainda não havia coletivas feministas que pudessem ajudar e ensinar meninas desesperadas. Com muita vergonha, tive que recorrer à minha família. Estávamos passando por muitos problemas financeiros, meus pais tinham se separado e tudo era muito complicado. De qualquer forma, consegui marcar, com o valor que conseguimos, em uma clínica baratinha num bairro da Zona Norte, recomendada por uma amiga de uma amiga de uma amiga que havia feito o procedimento lá. Entrei naquela casa escura com muito medo, mesmo acompanhada. A sala era mal higienizada, um cheiro estranho, cheia de ladrilhos quebrados, sofás marrons de couro e o médico era um senhor com cara de mau humor nada reconfortante. A única pessoa ali que sorria, tentando ser receptiva, era uma enfermeira, uma mulher grande e gentil. Usava tranças afro enroladas em um coque preso numa touca branca. Ela me pediu para entrar e sentar na mesa ginecológica. O médico entrou, me deu um remédio sublingual e uma injeção anestésica. O problema foi que a injeção não pegou. Eu senti cada etapa do processo, urrando de dor, enquanto a enfermeira olhava para mim com aqueles olhos gentis, passava a mão na minha cabeça tentando me acalmar, me dizendo que “já estava acabando”. Depois de um bom tempo de muito sofrimento, fui levada para outra sala, onde pude descansar por alguns minutos em um dos sofás marrons antes de ir embora. Tive dores muito fortes, contrações uterinas absurdas, de me levarem a delirar, e hemorragias que escondia de minha mãe, ficando horas no banheiro durante uma semana, chorando envergonhada.
O saldo dessa experiência foi duro, foi muita anemia, foi muito medo de morrer, e foi muito ódio e incompreensão de porque eu havia sido jogada nessa fogueira por tanta gente que dizia que me amava. E claro, muitos olhares tortos pelo “pecado” que eu havia cometido e que, “de repente”, todo mundo parecia saber.
O ALÍVIO
Aos 24 anos, dei mole com a tabelinha, calculei errado, e engravidei de meu ex-marido, na época ainda era namorado. Eu estava muito doente. Muito doente mesmo. Com depressão gravíssima e síndrome do pânico. Já foi chamado de psicose gravídica, ou de depressão gestacional e eu não sabia como era comum. Só fui saber muitos anos depois, lendo um estudo sobre patologias mentais durante a gravidez. Na minha cabeça, não havia a menor possibilidade de ter uma criança. Eu provavelmente mataria qualquer ser que dependesse de mim naquele momento, fosse planta, bicho ou bebê. Mal conseguia sair da cama, quanto mais pensar em passar madrugadas amamentando, criando, cuidando… Ele deixou bem claro que a decisão era minha, mas eu conseguia ver o medo que ele estava sentindo. Não era a hora, não tínhamos condições de ter e cuidar bem de um filho. Nem condições materiais, nem condições emocionais. Eu estava tão mal, que até terminei com ele, não queria ver a pessoa que havia causado aquilo (ciente que havíamos feito tudo juntos, mas além da doença, meus hormônios estavam me deixando irritadiça, quase raivosa… Até o cheiro dele me incomodava).
Juntamos nossos dinheiros, recebemos ajuda de amigas queridas e pude marcar em uma clínica de alto luxo na Zona Sul. Uma clínica que parecia um hospital. Limpa, cheirosa, toda arrumadinha. Fiquei esperando numa sala, e lá recebi a medicação sublingual. Quando começou a fazer efeito, fui encaminhada para a sala de procedimento numa cadeira de rodas, e ao chegar percebi que era um centro cirúrgico. Recebi anestesia geral das mãos de um anestesista, o obstetra me mandou contar de trás pra frente, e apaguei por completo. Quando acordei, estava numa maca, coberta com um lençol, e rapidamente uma enfermeira veio me ajudar a vomitar (a anestesia causa isso) e passar pano molhado no meu rosto. Não me lembrava de nada! Não senti nada do processo!!! Eu chorava convulsivamente e ela me abraçou, achando que era tristeza. Eu a abracei de volta, olhei as outras macas e vi outras mulheres chorando e sendo amparadas. Era um lugar de escolhas difíceis, mas onde as mulheres eram realmente amparadas!!! Olhei para a enfermeira, e disse: “Estou triste, mas esse choro é de alívio, acabou”. Ela sorriu, sem julgamentos, e me ajudou a levantar e trocar de roupa. Na saleta ao lado, um pequeno lanchinho, “só para levantar a pressão”, ela me disse. Recebi os medicamentos que precisava para conter a hemorragia e qualquer possibilidade de infecção (vejam bem, me deram os medicamentos!) e pude ir embora com a amiga que me aguardava, pois não quis que ele fosse comigo e ele respeitou. Mais tarde ele foi me ver e choramos juntos, pela tensão de tudo, pela experiência partilhada (em alguns níveis) e deitei em seu colo e seu cheiro não importava mais.
Esse foi o aborto que quem tem dinheiro pode fazer. Esse foi o aborto que toda mulher que não quer ter um filho deveria ter o direito de fazer, pelo SUS, pelos planos de saúde. Mas as mulheres com dinheiro abortam com segurança, as pobres morrem com hemorragias e intolerância.
A TRISTEZA
Nesse meio tempo, aos meus 29 anos, eu tive um tumor no ovário esquerdo. Esse tumor era enorme e englobou meu ovário e minha trompa. O médico que me operou precisou retirar ambos junto com o tumor, e me disse que eu tinha sorte de não ter perdido todo o aparelho reprodutor, pois o tumor era agressivo, apesar de não ser maligno. Fui avisada que, se eu já tinha certa dificuldade com ovulação, tinha períodos menstruais dolorosos, seria muito pior. E que provavelmente eu não mais conseguiria engravidar. O ovário que sobrou já tinha um cisto grande, que foi raspado, mas a possibilidade de ter outros era certa, então entrei no tratamento de pílula anticoncepcional ininterrupta. Não menstruaria mais e diminuiriam os folículos que poderiam se tornar tumores na área.
Aos 36, achei que tinha encontrado um amor desses de arrebentar o peito. Passávamos horas e horas discutindo livros e rindo na cama, depois de uma noite juntos. Ele despertava em mim o desejo de cuidar, de estar junto, de mexer em coisas na minha vida que eu havia deixado para trás. Eu não fazia o mesmo por ele, acho que ninguém seria capaz de fazer o mesmo por ele, uma vez que ele é a pessoa mais importante de sua vida. Poliamorista, de acordo com ele, abusador psicológico, de acordo comigo. Uma pessoa desestruturada e egoísta que questionava o status da nossa relação o tempo todo somente para garantir que ela não alcançasse status algum. Dava-me amor num dia, para tirar no outro. Deixou-me sozinha num dos piores momentos da minha vida: quando fui agredida e quando minha avó morreu. Estou explicando essa relação para poder explicar minha decisão de não avisar a ele que estava grávida. Minha decisão de tirar essa pessoa terminantemente da minha vida. Soube duas semanas depois que terminamos que eu estava grávida. Mas somente quando fui parar no hospital com dores que fariam o mundo explodir que soube que era uma gravidez ectópica, ou seja, o feto estava se desenvolvendo dentro da trompa de falópio.
Quando soube que estava grávida, todo um misto de sentimentos me perpassou. Ter um filho, finalmente. Ter um filho de alguém que amo, mesmo que essa pessoa não esteja presente. Ter um filho, meu momento, minha escolha. Dessa vez, foi meu corpo que não quis. Se eu não tomasse o medicamento, eu perderia a trompa que me restava e poderia morrer no processo. Meu corpo, minha regras, minha vida em primeiro lugar. Chorei muito, sozinha, eu queria ficar sozinha naquele momento, era muito triste saber que algo que me fora dito que jamais tornaria acontecer, aconteceu, mas eu não poderia ter. Como minha avó estava internada, caminhando para seu falecimento, não contei para ninguém o que estava acontecendo. Marquei com o médico e fui sozinha para o hospital, um hospital particular. Um ginecologista num hospital particular pago pelo plano de saúde que eu tinha na época. Ele conversou muito comigo. Explicou-me exatamente o que faria. Ele aplicaria uma injeção de Metotrexato e Misoprostol, que provocaria uma hemorragia severa com aborto num período de 01 semana. Após o aborto, eu deveria voltar para curetagem e ultrassonografia. Quando a gente tenta explicar a dor para as pessoas, geralmente elas não entendem, a não ser que tenham passado por isso. Vou tentar ser gráfica: meu útero contraía com tamanha força, que eu não conseguia ficar parada em um lugar da cama. Quando o fluxo de sangue veio, era tanto, que eu precisava ficar sentada na privada por minutos e minutos. A força era tão grande que parecia o experimento em que se coloca um Mentos dentro de uma Coca Zero. Logicamente, o médico passou um medicamento para dor e outro para conter a hemorragia. Quando voltei ao hospital, ele me informou que a curetagem seria apenas para garantir que não haveria infecção, porque eu já havia expelido toda a “massa”. Receitou-me mais uns medicamentos e me pediu para voltar em 06 meses. Eu não pude voltar, porque nesse meio tempo fiquei sem plano de saúde e sem grana para pagar um médico de hospital particular. Mas, ficou tudo bem porque fui tratada a tempo, sem preconceitos e sem medos. O procedimento era “legal”, uma vez que minha vida estava em perigo.
Pergunto-me: Quantas vidas em perigo não foram tratadas a tempo, ou adequadamente porque as pessoas acham que aborto é uma monstruosidade? Quantas mulheres não morreram por viver o mesmo que eu vivi? As estatísticas são assustadoras. O aborto “clandestino” é a quinta causa de morte materna no país. Mais de 850 mil mulheres realizam abortos por ano no Brasil. E morrem milhares porque a anestesia não pega, ou dá choque anafilático, porque não sabem a quantidade exata de medicamento tomar, porque nem tem dinheiro para um médico e furam o útero com um arame e ficam jogadas sangrando num quarto qualquer. Morrem porque quando chegam à emergência de um hospital com hemorragia causada por tentativa de aborto, são mal tratadas, mal recebidas, julgadas como vadias, vagabundas e pecadoras. E mesmo que o caso tenha sido de aborto espontâneo, muitas vezes recebem o mesmo tratamento, porque nossa sociedade é perversa com mulheres. Mulheres que trepam, mulheres que engravidam, mulheres que adoecem, mulheres que… SÃO MULHERES. Mulheres que querem ser donas de seus corpos.
Eu estou compartilhando minhas experiências mais traumáticas com vocês porque sei que alguma mulher vai ler e vai se enxergar aí. E vai se perdoar, como eu me perdoei. Vai se olhar no espelho e entender que essa culpa não vem dela, mas de uma sociedade patriarcal conservadora e moralista,  com valores ultrapassados que precisam ser rebatidos diariamente. E quem sabe algum preconceituoso leia, e perceba que fazer um aborto não é ir ali na esquina tomar um cafezinho. Fazer um aborto causa muita dor, física, emocional. Muita! E tudo que nós mulheres precisamos é de compreensão, apoio e o direito de decidir.