Na nossa casa eram servidas somente duas refeições,
o almoço e jantar. Pela manhã só tomávamos café preto, eventualmente eu podia
comer pão. Contudo, como havia dinheiro somente para meio pão apenas eu comia. A
gente só comia carne uma vez por semana. Então, no sábado, por volta das nove
horas, meu avô apontava numa esquina próxima a nossa casa trazendo um pacote
envolto num jornal amarrado com barbante e sujo de sangue. Era um pedaço de
carne com bastante osso. Seria mais justo dizer que era osso com o que sobrou
da carne, quase comumente um pedaço de costela. Minha avó o temperava somente com
um pouco de coloral, pimenta de cheiro e cozinhava boiando em água. Eram uns
dez litros de água para meio quilo de osso. Parte do caldo era reservado para
fazer o pirão escaldado que tanto meu avô gostava. Depois que o cozido esfriava
se formava uma espessa camada de gordura amarela que encobria tudo aquilo
estava submerso. Caso esquecêssemos um garfo no recipiente seria possível remove-lo
juntamente a camada inteira de gordura em forma de pirulito apenas puxando o
garfo pelo cabo.
A visão, o sabor e cheiro dessa comida me
embrulhavam o estômago. Quando não me restava outra opção, que não me servir dessa
iguaria, eu permanecia por horas com o forte sabor de sebo encerrado na boca. Como
não fosse suficientemente torturante ser obrigada a ingerir aquele alimento tão
mal preparado minha avó ainda removia a gordura que boiava na panela e guardava
para “temperar” o feijão no decorrer da semana. É quase desnecessário dizer que
eu odiava comer esse e outros pratos que nos eram servidos. Entretanto, era comer
aquilo ou ficar com fome. Não eram somente os alimentos que eram ruins, era a
cozinheira, primordialmente, o pior ingrediente. Ela teria o dom de tornar um filé
mignon, uma lagosta ou camarão alimentos indesejáveis.
Por isso, quase todos os dias eu fugia de casa no horário
das refeições. Naturalmente, eu ia para algum lugar onde eu pudesse comer
alguma menos ruim que as gororobas servidas por minha avó. Então, minutos antes
das refeições eu chegava à casa dos vizinhos. Ficava de pé com as mãos voltadas
para trás, a direita segurando o cotovelo esquerdo e a esquerda segurando a
parte de trás da saia. Fazia aquela cara de criança faminta – ou melhor, eu
tinha cara de criança faminta – até que a dona da casa se comovia e me servia. Lamentavelmente,
nem sempre eu conseguia fugir na hora das refeições ou a tática funcionava. Entretanto,
quando ela funcionava eu comia num desespero e numa pressa de chamar a atenção.
Cada refeição que eu fazia fora de casa parecia que seria a ultima. Eu comia
muito, comeria tanto quanto me servissem.
Dentre as vizinhas, que se compadeciam da minha
chantagem emocional, de uma em especial eu nunca esquecerei. Era uma senhora um
tanto desapegada, generosa, farta e, na mesma medida, mesquinha, hipócrita,
traiçoeira, simulada e cruel. Ela era
suficientemente generosa ao ponto de quase sempre me oferecer e servir refeições
e, portanto, ela era a minha escolha predileta. No entanto, sua generosidade
era invariavelmente acompanhada de boas seções de humilhações. Essa senhora, Dona
Aparecida, jamais deixava de fazer comentários constrangedores enquanto eu
comia, “Come devagar que a comida não vai fugir não”, “Parece que nunca viu
comida”, “Come bicha rea. É mesmo uma morta de fome!” e ainda hoje, volta e
meia, alega que eu vivia “para morrer de fome” e que nem pareço “aquela”, “daquele
tempo”.
Embora ainda fosse uma criança, eu percebia o tom
pejorativo e ofensivo de alguns dos seus comentários. De qualquer forma, eu
acreditava que me humilhar era seu direito. Bem, aceitando ou não, compreendendo
ou não os ataques, eu tinha mais fome do que orgulho. Então, eu os ignorava ou
os engolia tendo em vista poder matar a fome ou simplesmente poder experimentar
algo diferente.
Ao retornar para casa e encontrar minha avó ela
perguntava se eu não queria almoçar, eu dizia que não, ela desfilava uma tira
de xingamentos, mas acabava me deixando em paz depois de me colocar diante de
uma porção de louças para lavar ou ir irritar meu avô com um comentário
qualquer.
Bem, como disse anteriormente eu não a esqueço, e
jamais irei esquecer essa senhora que “generosamente” matava minha fome, porque
ela continuou me alimentando e me humilhando tempo suficiente para eu perceber
que comida nenhuma pagaria por aquele tipo de ultraje. É óbvio que não havia
generosidade no seu gesto, ela me alimentava unicamente com a finalidade de me
expor ao ridículo, de ter alguém para poder espezinhar.
Ela era uma criatura infeliz, uma alcoólatra
fracassada, insatisfeita com a vida, que precisava humilhar quem quer fosse
para que pudesse se sentir melhor. Ela acordava para beber e dormia porque era
derrubada pela bebida. Não trabalhava fora e ainda assim não cuidava
satisfatoriamente dos filhos ou da casa, mesmo tendo empregada doméstica. Sem
contar que vivia num casamento infeliz. Apesar de o alcoolismo ser uma doença,
de um casamento bem sucedido não depender somente da vontade e do empenho de um
dos cônjuges e de uma casa arrumada não ser garantia de sucesso de ninguém, o
seu fracasso não pode ser usado para justificar o seu caráter leviano. No
entanto, no final das contas, tudo é uma relação de causa e consequência. Eu até
entendo que ela não seria completamente responsável pelo tipo de vida que
levava. Agora é fato que eu, que sequer teria alguma gerência sobre a minha
vida, teria alguma responsabilidade pelos infortúnios que ela passava.
No entanto, vamos considerar que, talvez, ela
tentasse ser uma pessoa melhor me dando um bocado de comida. Mesmo assim, seu caráter
mesquinho falava mais alto. Eu sempre era servida depois que todos fossem
servidos e quando sobrava comida. Quando não sobrava me restava ficar apenas os
assistindo comer. Quando ela fazia aniversários em sua casa eu nunca, jamais,
era convidada. Mesmo assim, excepcionalmente, quando eu fugia da minha avó –
que me proibia de “ficar pelas biqueiras” das casas enquanto aconteciam festas
para as quais eu não havia sido convidada – e era vista me esgueirando pelo
portão alguém acabava me convidando a entrar.
Embora eu acompanhasse de perto todos os
preparativos – da confecção dos convites a preparação das lembrancinhas e
comidas – apesar de me insinuar bastante eu nunca era convidada para as festas.
Mesmo assim, eu partilhava da mesma ansiedade que os convidados e os
aniversariantes sentiam. Minha ansiedade atingia o nível máximo no anterior a
festa, quando eu perdia o sono pensando em tudo que poderia acontecer. Quando finalmente
era vencida pelo sono os meus sonhos eram povoados por balões, chapeis de festa,
língua de sogra, refrigerantes e muito bolo. No seguinte acordava cedo,
reservava minha melhor roupa e, pouco antes das dezessete horas, eu lavava o
rosto, passava um pano molhado por entre as axilas, penteava desajeitadamente o
cabelo, me vestia e ficava na expectativa de ser chamada para desfrutar um
pouco da diversão e das guloseimas. Algumas vezes eu não conseguia fugir aos
olhares da minha avó e era obrigada a me recolher mais cedo. O que me levava a
dormir era o cansaço de tanto chorar.
Quando eu conseguia ser mais esperta que minha avó,
ou quem sabe, quando ela propositalmente me deixava ser mais esperta, eu acabava
indo parar nas pistas de dança repletas de balões, meninas e meninos dançando
ao som do Balão Mágico, Xou da Xuxa, comendo docinhos e tomando refrigerante.
Na hora dos parabéns eu me encostava bem à mesa para garantir que eu ganharia
uma lembrancinha e me fosse servido um pedaço de bolo. Quase sempre eu era a
última a ser servida e receber a lembrancinha. Normalmente as lembrancinhas
eram confeccionadas somente para aqueles que haviam sido formalmente convidados.
Bem, o tempo passou, as coisas mudaram, eu mudei.
Mas, lamentavelmente, Aparecida não mudou muito. As experiências pelas quais
passou – grande parte delas muito ruins – não a ensinaram nada. Ela continua a
mesma pessoa traiçoeira, simulada e escrota. Certa ocasião, enquanto eu dirigia
pelo bairro onde morávamos – ela continua morando na mesma casa onde eu passei
por tantas humilhações – em busca de uma imóvel para comprar eu a encontrei
bebendo sentada na calçada da casa à frente da sua.
Dirigia devagar procurando placas de venda quando
ela me avistou e me convidou para descer do carro e lhe falar. Atendi ao seu
pedido e fui me sentar ao seu lado. Tão logo me sentei ela me solicitou que lhe
pagasse uma cerveja. Mandei lhe trazer duas e enquanto ela alimentava seu vício
a ouvia dissertando pela enésima, agora para duas pessoas que eu acabava de
conhecer, como havia sido a minha infância, de como era magra, descuidada, de
como ninguém achava que eu iria “dar pra alguma coisa”... Ela não economizava
na dramaticidade. Falava que eu não tinha o que vestir, que vivia nas casas em
busca de comida e me escondendo atrás portas com medo de tudo. Ressaltava que,
porém, atualmente não havia quem dissesse “quem fui eu”.
Talvez a irritasse o fato de não me causar
constrangimento algum as revelações a cerca da minha história de miséria e humilhações.
Então, ela repetia de forma jocosa algumas histórias da minha infância e
adolescência e da minha relação com minha avó. Eu apenas ria. Infelizmente, ela
não compreende que ser muito pobre ou nascer numa família desajustada não é uma
escolha, é uma fatalidade. Já, passar a vida inteira sendo uma pessoa medíocre
ou mau caráter aí sim é uma escolha. Uma péssima escolha, vale ressaltar!
Era visível a satisfação que ela sentia ao relatar
a minha antiga condição. A mim estava claro o quanto era doloroso para ela perceber
que nada do que ela dizia me atingia e que tudo aquilo que passei não me
assombrava mais. Eu percebia o quanto era difícil para ela perceber que eu não
era mais aquela pessoa indefesa e vulnerável e que ela não poderia usar sequer
seu poder econômico para me humilhar. Pelo contrário, finalmente eu podia
retribuir a “generosidade” que ela teve comigo.
Enquanto conversávamos pedi para uma das garotas
que lhe fazia companhia antes da minha chegada e que eu acabara de conhecer
para ir pegar um sanduiche e um refrigerante para mim na mesma lanchonete onde
foi comprada a cerveja. Aparecida me perguntou se eu poderia pedir outro sanduíche
para ela. Orientei a moça para que trouxesse dois sanduíches e um
refrigerante.
O pedido chegou e continuamos conversando, já que todas
as vezes que esbocei movimento para ir embora ela insistia para que eu ficasse
mais um pouco e, como com tempo livre naquela tarde, acabei cedendo a pressão.
Também devo confessar que a situação estava bem divertida e eu daria um braço
para permanecer ali e ver até onde aquele conversar iria nos levar. Não me
incomodava sua presença, muito menos a sua conversa sobre o meu passado e suas
perguntas sobre minha condição atual. Já as minhas revelações a deixavam
visivelmente contrariada, a incomodava saber que eu estava bem. A naturalidade
com que falava sobre as coisas que fazia e que havia feito e até mesmo sobre
meu crescimento pessoal e profissional lhe causava um despeito sem tamanho. Até
o tom da sua voz denunciava o desconforto que ela sentia. Mesmo assim ela não o
parava de me fazer perguntas a meu respeito.
Quando finalmente a conversa se esgotou e conclui
que ali nada mais me interessava resolvi partir. Agradeci pela companhia
agradável de todas e me despedi. Caminhei até ao meu carro, liguei o motor e,
finalmente, fui arrumar o retrovisor. Ao olhar em direção ao local onde
estávamos sentadas pelo espelho do retrovisor a avistei com o dedo médio em
riste. A encarei, sorri mais uma vez e movimentei a mão direita dando adeus.
Conclui o aceno dizendo “Até mais Aparecida”. A sua expressão facial jamais
poderá ser descrita. Apenas me arrisco dizer que revelava um misto de
desapontamento, vergonha e medo. Fui embora rindo muito. Nunca mais a vi.