sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Adão pariu Eva





Quando argumentamos que a opressão contra a mulher é uma questão histórica não estamos relativizando e quando também afirmamos que a história das mulheres vem sendo sistematicamente apagada ou relegada a papeis secundários não estamos dramatizando. Basta ver a relação que foi estabelecida entre homens e mulheres desde os primórdios na Bíblia, livro considerado guia espiritual e, para parcela significativa dos indivíduos, um documento que conta a história da humanidade. Se "confiarmos" que Gênesis relata o instante em que tudo começou podemos observar que a história da mulher é obscura, repleta de ambiguidade e que essa obscurecênscia ocorre desde os primórdios, ou seja, desde a narrativa da origem do universo. 

Pra quem não conhece o livro de Gêneses, ele contem uma das mais recontadas passagens bíblicas, a criação do homem, Adão, e da mulher, que pode ter sido Eva ou Lilith, mas quanto a esta última, é assunto pra outro post (acho a história de Lilith instigante demais pra ser apenas pincelada, como seria neste post, já que o foco é Adão e Eva). É em Gêneses que a bíblia que retrata a criação do universo e de tudo o que é vivo e não vivo sobre a terra. É nesse trecho que Deus diz “E se faça a luz” e fez-se a luz, também é nesse livro que Eva, tentada pela serpente, tenta Adão a comer a maçã, o fruto proibido, e por conta dessa desobediência ambos são expulsos do paraíso. 

Ainda é nesse livro que Noé amaldiçoa seu filho Cam e toda a sua linhagem, após ter sido visto nu e embriagado por ele. Essa é outra história estranha – muito difícil acreditar que um pai amaldiçoa o filho só porque ele o viu nu – mas enfim, este também é outro assunto. Porém, quem for um pouco mais curioso pode pesquisar sobre “a maldição de Cam”. Há, foi baseado nessa história que Marco Feliciano esbravejou o impropério de que os “negros seriam amaldiçoados, pois descendiam da linhagem direta de Cam”. Ora, Noé tinha outros filhos, se Cam era negro, suponho que seus irmãos também eram, mas apenas Cam foi amaldiçoado, por que mesmo todos os negros são amaldiçoados? Coisas de Feliciano! 

Depois de uma longa viagem, vamos voltar ao foco? Ou seja, Gênesis, livro fonte de inumeráveis discussões, onde se encontram as controversas versões para a criação da mulher. É melhor que vejamos os versículos conforme a Bíblia.

Gênesis 1, cap. 26: Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, con­for­me a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais ­que se movem rente ao chão". 

Gênesis 1, cap. 27 Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.

Já conforme Gênesis 2

Gênesis 2, cap. 21 Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. 

Gênesis 2, cap. 22 Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele. 

Compreendo que uma coisa é completamente diferente de outra, e a primeira narrativa destoa totalmente da segunda, más, vou deixar a discussão a respeito da ambiguidade das versões, qual das duas é correta, se uma complementa a outra (segundo a Bíblia) e o que de fato aconteceu para os teólogos e pesquisadores, vou me ocupar de pensar sobre o porquê de uma versão se popularizar e se sobrepor a outra.  E ai me resta o seguinte questionamento: Porque prevaleceu a versão de que a mulher teria sido originada a partir da costela de Adão?  


Essa pergunta me instiga a pensar sobre outras questões muito sutis; numa sociedade centrada no homem, seria interessante que a mulher fosse igual a ele, conforme supõe Gênese I, criada da mesma matéria? Outra questão é; sendo Eva a responsável pela expulsão da “humanidade” do paraíso (o Jardim do Éden) poderia ser ela também a responsável por, materialmente, gestar e parir aqueles que começariam a linhagem dos “nascidos da carne”? 

Posso está exagerando e fantasiando, mas me parece muito conveniente a propagação do Gênesis 2, e sua elaboração sobre a criação da mulher, já que me soa bastante útil ao propósito machista de negação da mulher e a sua subordinação.
Segundo Gênesis 2, a mulher, Eva, foi criada a partir da costela de Adão. Penso que o contexto todo é muito, mas muito suspeito mesmo, e não estou falando em termos de paleontologia. A escolha do nascimento da Eva a partir da costela de Adão me diz muita coisa, inclusive que essa criação se assemelha muito mais a um parto do que propriamente criação. Ora a narrativa revela que Eva nasceu da região do abdome de Adão, mesmo local onde o feto é gestado. Entenderam onde quero chegar? Não encontra uma sutil semelhança entre o ato de tirar “a costela e fechar com carne” com um parto? 

A partir dessa percepção, outras questões podem ser pensadas, a primeira é; ideologicamente, seria possível os redatores de Gênesis 2 terem tido a intenção de conduzir a um certo sentimento de que o homem já foi capaz de parir? A outra questão a ser pensada é; sendo Eva carne da carne de Adão, não seria justo dizer que ela deveria obediência e gratidão ao gerador?

Essas interlocuções me fazem acreditar que a propagação de Gênesis 2 foi mais interessante porque tende a negar a mulher enquanto geradora e atribuir ao homem essa função, além do mais põe a mulher sob a condição do julgo masculino. 

"Na verdade, os mitos dizem respeito mais ao presente do que ao passado. Com tais mitos não se quer apenas, nem principalmente, explicar as origens, mas apresentar as coisas como são, ou como deveriam ser, estabelecer sua ‘natureza’. Assim, a ‘ordem’ apresentada na narrativa da criação submete a mulher ao homem, legitimando, ao nível ideológico, a submissão feminina. Segundo a narrativa bíblica, apenas o homem é criado diretamente pela divindade. Eva existe graças a Adão, de cuja costela é feita. Aquilo que é prerrogativa exclusiva do sexo feminino — a procriação — lhe é roubado. Inverte-se a lei biológica e o homem se faz o gerador da mulher. A anterioridade de Adão se torna um elemento justificador de sua prepotência e dominação sobre a mulher. Daí o interesse pela figura de Lilith (box), que não é feita de Adão, mas é igual a ele, feita do pó.” Maria J. R. Nunes – Scielo.


Portanto, se Eva veio ao mundo a partir do “ventre” de Adão, a mim não restam duvidas Adão pariu Eva.

PS: Li alguns textos, outros eu até tentei mas eram tão tolos que sequer consegui ler mais que um paragrafo, com informações e posições teológicas e antropológicas sobre o assunto. Então, entendo o contexto histórico e muitos os aspectos subjetivos relativos as narrativas. Espero que entendam que  parti do senso comum pra construir o texto com a finalidade de justificar porque certos mitos se sobrepõem a outro ou se propagam facilmente. Não ficarei chocada ou entrarei em depressão se me disserem que Eva e Adão não existiram e que nunca existiu Eden ou Noé.
        






quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

E se fosse diferente...



Hoje à tarde resolvi ir até ao supermercado a pé, curtindo um pouco a temperatura amena, o tempo nublado e o finzinho de tarde. Então, coloquei um short, uma camiseta, uma rasteira, prendi o cabelo e fuiiiiii... 

Sentia o vento gostoso bater no meu corpo e um tanto de liberdade, até que um sujeito para na minha frente e fica me olhando de uma forma tão invasiva que me senti completamente nua – e não foi que me senti culpada por estar usando uma camiseta decotada e shorts –, senti um incômodo enorme. Continuei caminhando pela rua e ele me olhando com uma malícia desconcertante. Cheguei em casa muito irritada, muito mesmo, indignada. Então lembrei o vídeo “Maioria Oprimida - Majorite Opprimee” e pensei que poderia ser diferente.

 



E se pudéssemos sair na rua sem ter de enfrentar os olhares desconcertantes, desejosos, indiscretos e inconvenientes? Se não tivéssemos de nos esconder ante os olhares invasivos? E se não tivéssemos medo de reagir a esse tipo de assédio? E se a situação fosse exatamente o inverso?


Gostaria de dizer àquele homem que não me senti lisonjeada com o assédio, embora esteja com 40 anos e de acordo com as piadinhas machistas e de mal gosto possa ser considerada semelhante a uma bola de golfe – apenas um homem correndo atrás de mim – senti nojo daquele cara. Se pudesse, o teria levado à delegacia para que sofresse qualquer punição. Queria que outros homens também soubessem que nenhuma mulher gosta de ter seu corpo observado como se fosse um suculento pedaço de carne. Este tipo de atitude faz nos sentirmos amedrontadas e acuadas e ,sobretudo, enojadas. E se fosse numa rua erma? E se fosse à noite? 

O homem que age assim não é um garanhão é um idiota mal amado, mal resolvido com a própria sexualidade. Portanto, está na hora de repensar o seu sex apeal, não é desnudando uma mulher na rua que vai leva-la pra cama ou se tornar mais homem – pensem nisso – tá?



Sandra: uma luz que o machismo não apagará




Finalmente encontrei tempo e estômago pra discorrer sobre o assassinato de uma companheira, Sandra Lúcia Fernandes, que foi morta covardemente a facadas por seu namorado, Marcos Aurélio Barbosa da Silva. Sandra era professora, feminista, militante ativa no Sindicato dos Profissionais de Ensino da Rede Oficial do Recife (Simpere), no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e no Movimento Mulheres em Luta (MML). O assassino que diz não está arrependido do crime, não se comoveu sequer com a intervenção do filho de Sandra, Icauã Rodrigues, 8 anos, que tentou evitar a tragédia e acabou sendo assassinado com o mesmo requinte de crueldade. 

Apesar de não conhecê-los, senti profundamente a perda, principalmente por ser ela uma companheira de causa e ser morta justamente por aquilo que combatemos, a cultura machista e o sistema patriarcal. Justificar um assassinato, "Fiz por ciúme", conforme fez Marcos Aurélio, escancara o terrível sistema de opressão do qual nós mulheres somos vítimas e a falência da sociedade em coibir os crimes por motivos torpes e que vitimam majoritariamente nós mulheres. Os assassinatos ocorreram em Olinda, na noite de domingo para segunda. O de Sandra irá figurar como mais um no interminável rol de feminicídios que matam diariamente dezenas de mulheres, em sua imensa maioria, meras anônimas. 

Como compreender que milhares de mulheres sejam mortas anualmente em decorrência de ciúmes? 

O ciúme, que muitas vezes é legitimado pela sociedade através da associação ao zelo, revela nada mais que o sentimento de posse, um dos pilares ideológico e material, além de instrumento de opressão e dominação, do sistema patriarcal. É justamente a partir desse sentimento de propriedade que se estabelecem essas relações de desigualdade, que oprime as mulheres, que a submetem a toda sorte de violência que culminam com os assassinatos. 

Sandra, como muitas outras mulheres, mesmo à sua revelia, foi colocada na condição de objeto e enquanto patrimônio não poderia decidir sobre o próprio corpo e vivência sexual. Portanto, ao ameaçar romper com uma relação abusiva ou se relacionar com outro homem desafiou gravemente a autoridade de Marcos – algo intolerável para o homem possessivo e ciumento, que normalmente entende que a se a mulher “NÃO PUDER SER SUA NÃO SERÁ DE MAIS NINGUÉM” – assim sendo, cumpriu-se as premissas; Sandra não será de nenhum outro homem e Marcos Aurélio exerceu ao máximo sua masculinidade, “lavou sua honra com sangue”. 


A história da Companheira Sandra repete com todas as vírgulas os roteiros de muitos outros assassinatos. Omitindo os nomes, endereços e datas esse assassinato conta a história de tantos outros milhares de feminicídios que têm em comum o ciúme como motivação. Não esquecer esse caso significa não esquecer e não se calar frente a todos os outros, inclusive os que caíram na obscuridade. Sua morte deverá servir para que sua luta e seu grito contra toda forma de opressão continuem ecoando intermitente na nossa sociedade e lembrando que o sistema patriarcal e a cultura machista matam; que interrompe sonhos; destrói famílias e deixa milhares de órfãos legítimos e os que reconhecem naquelas que partem um referencial, como no caso de Sandra. 

Já passou do tempo de romper com a cultura machista, com o sistema patriarcal e extirpar da nossa sociedade a violência contra a mulher e os feminicídos. Pra isso é imprescindível a ruptura com a cultura de coisificação da mulher e o combate à impunidade, mas sobretudo, o enfrentamento da opressão contra a mulher.