segunda-feira, 30 de março de 2015

Meu estupro aconteceu no seio familiar



Resultado de imagem para debutante desenhoPor: Daiara Figueroa

Aconteceu quando tinha 15 anos. Com onze anos fui morar na França e voltei quatro anos depois para a Colômbia onde tinha passado minha infância: meu corpo era outro sem que eu mesma percebesse, e isso foi notado por pessoa muito próxima.
Meu estupro aconteceu no seio de minha própria família, por isso assim que tive a oportunidade de voltar para o Brasil decidi que não queria voltar lá tão cedo, apesar de amar o restante de minha família e a cultura desse, que também, é meu país.
O processo de sobrevivência a um estupro é algo lento e demorado.
Se hoje falo abertamente disso, o faço com tranquilidade: não me envergonho, pois sei que eu não tive culpa de nada.
O ato foi violento, foi assim que perdi minha virgindade e até hoje não tolero que alguém segure meus pulsos com força. No primeiro momento o sentimento do horror, do nojo do próprio corpo, do ódio, o enjoo, a sujeira era muito grande. Fiquei um bom tempo me ocultando com roupas largas e escuras: não queria aparecer ou chamar a atenção novamente.
Resultado de imagem para violencia contra a mulher na familiaEm seguida o sentimento de vingança tomou conta de mim, e fiz terror e pânico de meus relacionamentos adolescentes. Sentia-me justiçada em fazer homens sofrer recusando-os, atraindo-os e humilhando-os. Fui muito cruel com pessoas que não mereciam e que não faziam ideia de porque agia assim, ou pelo que tinha passado.
Como muitas mulheres não falei nada para minha família, pois tinha medo da reação, da tristeza que isso poderia gerar, e também não queria que outras pessoas se sentissem responsáveis por isso. Queria poupar as pessoas que amava e que me criaram com tanto carinho lá onde estava longe de meus pais.
Resultado de imagem para tristezaQuando tive a oportunidade de voltar ao Brasil foi um alívio, uma fuga que tirou de mim o peso de conviver com meus agressores. Foi aqui que conheci finalmente o amor, a confiança, a intimidade serena e a calma. Todos os meus namorados souberam o que tinha acontecido comigo: sempre fui franca com relação a isso. Todos me respeitaram e apoiaram e por isso lhes sou muito grata, pois foram esses relacionamentos que me colocaram de encontro com meu corpo novamente. Falar com eles foi o primeiro passo de meu processo de cura.
Resultado de imagem para estupro estatisticas criançasCrescendo e deixando a adolescência de lado consegui me abrir com meus amigos, em especial minhas amigas, e fui me dando conta de como era comum esse tipo de violência. A verdade e que todos nós já conhecemos uma mulher que um dia já foi violentada.

Conseguir me abrir com minhas amigas me deu coragem de me informar melhor a respeito e superar o trauma da lembrança: por dez anos qualquer cena de filme ou TV relacionada me fazia chorar. Os pesadelos eram recorrentes. E não era apenas uma lembrança visual, mais física, que baixava minha pressão, me enjoava e fazia até vomitar.
Compreender que não era a única, e o sentimento de não estar sozinha, mesmo que todas estivéssemos caladas, me deu força para superar esses sentimentos de repulsa a minha própria história.
Resultado de imagem para violencia contra a mulher na familiaPesquisando os diferentes tipos de violência e reeducando minha memória me dei conta que meu estupro não tinha sido a primeira violência sexual da qual tinha sido vítima. Dei-me conta que em minhas memórias confusas da pequena infância eu já tinha sido molestada (talvez não por acaso) por uma das pessoas que voltaria a abusar de mim depois. Mas, como era criança não tinha percebido ou entendido o que tinha acontecido. Só percebi adulta: lembrei daquilo que aparente tinha ocultado em minha mente para me proteger.

Resultado de imagem para violencia contra a mulher na familiaRecentemente, já com trinta anos tomei coragem e pude me abrir com minha mãe. Minha única e essencial família. Era um dos últimos fardos que tinha para me libertar de tanta dor. O silêncio de quinze anos tinha feito horrores com nosso relacionamento. Apenas o distanciamento e o tempo me permitiu notar como a culpei e a fiz sofrer por algo que ela tampouco sabia. Foi uma conversa dolorosa, necessária, com alguns tropeços, mas finalmente reconciliadora. Eu sei o quanto nos amamos e, certamente, nos amaremos cada vez mais.
No começo de março dei em minha escola uma aula sobre o tema do dia internacional da mulher. Como militante feminista, considero meu dever alertar as futuras gerações para combater e denunciar essas violências. Apresentei dados, e fiz algumas perguntas em sala: perguntei quantas das meninas já tinham se sentido incomodadas com cantadas e olhares na rua e todas levantaram a mão. Meus alunos têm entre 10 e 13 anos.
Resultado de imagem para estupro estatisticasConversando sobre as estatísticas muitas crianças se abriram e contaram a história de suas famílias. Alguns eram casos de terror. Uma delas tinha procurado ajuda quando o pai espancava a mãe; outra tinha uma prima que foi estuprada e morta; outra tinha sido vítima de tentativa de sequestro (e o sequestro feminino geralmente inclui o estupro no pacote)... Outras alunas choravam em silêncio na sala, dando a entender as violências que assistiram ou passaram, mas não tinham coragem de contar.
Hoje está tendo este ato virtual em resposta à pesquisa que mostrou que a grande parte da população brasileira culpa a mulher pelo estupro.
Foto Daiara Figueroa
Decidi participar e me mostrar como indígena que sou, pois no Brasil as mulheres indígenas são um dos grupos mais propensos a violência sexual. São Gabriel da cachoeira, cidade perto da aldeia de minha tribo é conhecida como uma das capitais da exploração sexual infantil (conhecida popularmente como prostituição infantil) e tráfico de mulheres, e a grande maioria destas mulheres são indígenas.
A figura da mulher indígena, assim como a da mulher negra é violentamente sexualizada em nosso país. Isto é algo que não podemos aceitar e que também devemos combater.
Tudo isto fez parte de meu processo de cura. A violência sexual existe, e o estupro é algo comum.
aproximadamente 80% dos estupros acontecem dentro do circulo familiar: são parentes e amigos próximos. As estatísticas do abuso infantil são semelhantes.
Mesmo que inaceitável, muitas pessoas convivem com a memória dessas violências. É uma convivência dolorosa, mas toda dor pode também se transformar em cura.
Curamos a nós mesmos quando entendemos que não estamos sós. E que somos mais fortes e não precisamos gerar mais violência, pois violência se cura com amor e paciência.
Daiara Figueroa

Curamos a nós mesmos quando apoiamos os outros, os escutamos, ou simplesmente acompanhamos: a cura é algo de mão dupla.
Curamos a nos mesmos quando alertamos sobre a violência, e educamos para que ela cesse.
Este é meu processo de cura. Estou em paz com isso.
Podem ficar tranquilos.
I'm freaking fabulous!




sábado, 28 de março de 2015

Moça é insultada pelos “pró vida” porque foi mãe aos 14 anos



Resultado de imagem para maternidade compulsoriaDurante a campanha “provida”, promovida no Facebook condenando o aborto, onde mães eram desafiadas a postarem fotos grávidas dizendo que optaram por levar a gravidez adiante, Luciana Campos Rodrigues foi desafiada a postar sua foto grávida se posicionando contra a interrupção voluntária da gravidez. Luciana não aderiu a campanha. Ao invés disso escreveu um depoimento comovente relatando as dificuldades pelas quais passou por conta da gravidez na adolescência e sobre como fora obrigada a prosseguir com a gravidez indesejada. Leia clicando aqui. O depoimento apesar de revelar uma história muito dura, muito dolorosa e bastante sofrida não conseguiu sensibilizar alguns dos leitores. 
Resultado de imagem para maternidade compulsoria 
A confissão verdadeira, intensa e marcante expondo o lado cruel da maternidade compulsória levou Luciana a sofrer uma intensa hostilização nas redes sociais, ser denunciada e bloqueada por um mês pelo site Facebook. Depois de todas as agressões que sofreu por conta de sua posição favorável ao direito de escolha das mulheres Luciana escreveu o desabafo que pode ser lido abaixo.
“É muito fácil ser pró vida contra o aborto mas ser pró vida e ter respeito e empatia pela vida alheia, não...
Resultado de imagem para maternidade compulsoriaSe você acha que não tem a ver, tem sim, tem tudo a ver...
O intuito do meu post era dizer que toda pessoa tem direito de optar pelo o que quer fazer com o próprio corpo, não criei aquele post pregando o nazismo e mandando todo mundo abortar...
O intuito dele era combater essa campanha de desinformação que muitas mulheres pró vida estão criando no Facebook, promovendo ignorância e criminalização de outras mulheres...
Resultado de imagem para maternidade compulsoria
Se você escolhe seus parceiros, se você usa roupa curta, se você faz qualquer coisa com seu corpo e exige respeito por isso e luta pelo direito de assim fazer, não deveria se dizer pró vida julgando como criminosas as outras mulheres quando elas mesmas não podem optar pela própria vida ou decidir o que fazer com o próprio corpo...
Ocorre exatamente quando um homem quer o seu corpo e não te permite escolher se você também o quer ou não. Não ter o direito de optar é uma violação do seu direito vital de gerenciar a própria vida, do seu direito de, enquanto cidadã, exercer ou não a maternidade... Não se trata de aborto [...] se trata de autonomia do ser, no caso, da mulher...
Resultado de imagem para maternidade compulsoriaEstamos em 2015 e é inadmissível que a mulher não tenha conquistado a sua autonomia nesse sentido...
Vinculado ao coro de outras mulheres que reproduzem o discurso machista, com mentalidades retrógradas e ignorantes que lutam a favor da permanência da criminalização de algo que nos deixa ainda mais presas ao sistema patriarcal e capitalista e bem longe duma realidade de liberdade total sobre si mesma...
Não consigo acreditar que muitas mulheres comentaram algo como "bem feito, quem mandou transar", como se elas estivessem longe de passar por isso... Não, vocês não estão isentas de passarem por isso, pois muitas mulheres casadas, engravidam tomando pílula ou qualquer uma está sujeita a ter uma camisinha estourada e de repente se vê numa situação de gravidez indesejada...
Isso pode acontecer com qualquer mulher, aos 14 anos, aos 25, aos 30, não importa a idade, o estado civil ou classe social...
Resultado de imagem para maternidade compulsoria
Condenar uma mulher que consensualmente teve uma relação sexual mas que não quer assumir uma gravidez indesejada, precoce ou não, só mostra o paradoxo da sociedade doente e deturpada que vivemos. Uma sociedade em que as mulheres que abominam estupro, por ser algo que não é algo indesejável e que viola a liberdade e autonomia sobre o próprio corpo, acabam sendo exatamente as mesmas que viram no meu relato, de uma gravidez forçada, um " bem feito", "tem que aprender a deixar de ser besta", " quem mandou abrir as pernas" e denunciaram a foto por violência explicita...
Resultado de imagem para maternidade compulsoria
Essa propagação de ignorância, machismo e preconceito, além do desejo de permanência da criminalização de mulheres que ainda são vistas como "assassinas" quando optam clandestinamente pela autonomia do próprio corpo, tem que acabar...
E se for preciso publico quantas vezes achar pertinente a foto que enaltece a “violência explicita” da ignorância de vocês. .
Beijos de luz!!!
(Luciana Campos Rodrigues)
Resultado de imagem para maternidade compulsoriaQue tipo de gente pode ler um relato tão chocante quanto o de Luciana e ainda assim achar que ela mereceu passar por tudo que ela passou simplesmente para aprender? As mulheres precisam realmente ser punidas por fazerem sexo? Porque os homens não precisam ser punidos por fazerem sexo? Segundo essa lógica somente os homens devem fazer sexo. Mas, então porque o sexo entre homens também é tabu?
Nada numa sociedade machista parece fazer sentido. Exceto o abuso de mulheres, a violência contra as mulheres, o sofrimento das mulheres e as dores que a elas são impingidas. Qualquer a agressão às mulheres fazem muito sentido. Porque nas sociedades patriarcais nós merecemos, nós provocamos... Nesse sistema a maternidade não é uma escolha.
Resultado de imagem para maternidade compulsoriaA gravidez não deveria ser um mecanismo de punição de mulheres. A obrigação de gerar e criar filhos indesejados não poderia se converter num problema para a própria sociedade?
Eu não tolero a tremenda hipocrisia das pessoas que veem num embrião, que a depender do estágio de gestação não difere do embrião de qualquer outro mamífero, uma criança a ser protegida, mas que sequer é capaz de baixar o vidro do carro para dizer um “não” cordialmente a criança pedinte ou que trabalha limpando vidro de carros. 
Resultado de imagem para maternidade compulsoria
Vida a ser protegida é de Luciana que foi sistematicamente espancada pelo pai, pelo marido e que a sociedade lhe virou a cara todas as vezes que precisou de pelo menos uma palavra de consolo. Vida a ser protegida é de uma mulher que sabe que não tem condições de levar adiante a gravidez e que, irremediavelmente, decide pelo aborto clandestino. Vidas que precisam ser protegidas são as de milhares de crianças nos orfanatos e de outros milhares de crianças na rua se drogando, sendo abusadas e exploradas sexualmente nas ruas. Vidas que precisam ser salvas são das crianças trabalhando em carvoarias, em lixões, em confecções clandestinas ou aquelas que reiteradamente estão sendo violentadas pelos pais...
Resultado de imagem para crianças abandonadasMenos hipocrisia e mais ação. Vamos cuidar das crianças que realmente estão indefesas e vamos deixar de cuidar da vida das mulheres, que por acaso a gente se sequer sabe se estão gravidas ou não. Do contrário, vamos olhar nos olhos das crianças que gritam por socorro e vamos dizê-las que elas não importam, que nos importamos realmente com aquelas que são apenas uma expectativa de vida e que sequer sabemos que existem. Vamos cuidar dos seres que nem sabemos que existem e ignorar os que sofrem à nossa vista. Muito sublime isso!