quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Camisinha, sério que você não usa?




 
Resultado de imagem para imagem de combate ao hiv“Heterossexuais adultos representam a maior parcela nas novas notificações de infecção pelo vírus HIV. Em 2012, 67,5% dos casos informados pela rede de saúde pertenciam ao grupo de heterossexuais, sendo a maioria formada por mulheres, com 58,2%. O levantamento também mostra que a maior incidência de contaminação está na faixa de 30 a 49 anos, incluindo héteros e homossexuais. Os grupos vulneráveis, somados, responderam por um terço nas notificações.” Leia mais sobre esse assunto no G1.
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"Eu desconfiava que meu marido tinha suas aventuras extraconjugais. Desde 1993, ele apresentava sintomas estranhos. Foi internado várias vezes com crises de herpes-zoster e tuberculose. Resolvi fazer um exame. Nunca mais vou esquecer aquela sexta-feira 13, dia em que saiu o resultado. Era janeiro de 1995. Aos 35 anos de idade, confirmei uma suspeita que me martirizava: fui contaminada pelo HIV por meu marido. Fiquei em estado de choque. Só conseguia chorar e passei a pensar que iria morrer no dia seguinte. Eu me senti impotente, injustiçada, arrasada. Não era promíscua, não recebi transfusão de sangue nem usava drogas de nenhum tipo, quanto mais injetáveis. Só poderia ter pegado Aids de uma maneira: fazendo sexo com o homem com quem vivo há dez anos.  Estou pagando pelo prazer que meu companheiro foi buscar fora de casa." Jerusa Maria Mendes, hoje com 38 anos, pedagoga pernambucana. Depoimento publicado na VEJA

Resultado de imagem para imagem de combate ao hivPor volta de 1992 quando as discussões sobre Aids se encontravam entre os assuntos mais comentados na mídia e quando ainda se falava muito sobre grupos de risco eu tive a oportunidade de conhecer uma senhora de pouco mais 40 anos cujo marido, na mesma faixa etária, havia contraído Aids e morrido pouco antes de nos conhecermos. Eu tinha 20 anos e como a maioria dos jovens daquela época eu não tinha muita informação a respeito da doença e das formas de contaminação. Sabia o que dizia o senso comum, sabia dos grupos de riscos... Conhecer essa pessoa foi um presente que ganhei e que me fez entender que a coisa mais importante que eu poderia fazer por mim era cuidar da minha saúde, que os minutos de prazer não poderiam me levar a correr o risco de passar a vida inteira enfrentando uma doença extremamente estigmatizada.

Resultado de imagem para imagem de combate ao hivFátima, como vou preferir chama-la, estava casada há mais de 14 anos quando o marido adoeceu e, por acaso, descobriu que estava com aids. Além de revelar que ele era soropositivo ainda informou que era bissexual, que o parceiro também estava doente e que iria morar com o casal. Por conta de todo estigma que envolvia a doença no decorrer da década de 80 quem acabou tendo de cuidar do marido e do parceiro do marido foi Fátima, a família de nenhum dos dois assumiu essa responsabilidade.  Dado o estagio da doença o parceiro do marido deveria morrer primeiro, o que de fato se confirmou. Pouco tempo depois o marido também faleceu. Fátima e as duas filhas precisavam, desde então, fazer exames para verificar se haviam sido contaminadas com o vírus. Felizmente nem ela e nem as filhas foram contaminada.

Resultado de imagem para imagem de combate ao hivEu nunca havia visto alguém que conviveu com um soropositivo. Conhecer Fátima me fez compreender que qualquer pessoa estava exposta ao risco de contaminação. Eu pensei em todas as relações que tive sem proteção. Eu tinha tido poucos parceiros, mas eu não havia usado preservativos com eles. Mesmo assim o pânico tomou conta de mim. Foi então que tive a ideia de fazer uma doação de sangue para fazer o teste. Quando recebi o resultado de negativo para HIV, sífilis, hepatite e outras doenças infectocontagiosas senti vontade de dar uma festa. Se a partir do dia em que ouvi Fátima contar sua história eu havia decidido usar preservativo em todas as relações, depois de receber o resultado dos meus exames os cuidados com a minha saúde redobraram.

Então, eu reencontrei meu marido em 1997, com ele não foi diferente, usamos preservativo por mais de um ano. Depois de um tempo, e da insistência para que a gente parasse de usa-lo, eu pedi para que ele os exames pré-nupciais e com os resultados em mãos a gente parou com o preservativo. Entretanto, depois de algum tempo eu percebi que fazia mais sentido usa-lo, até com a finalidade de ter a camisinha como método de barreira á gravidez. Além disso, meu esposo trabalha na área de saúde e por causa disso ele está mais exposto ao risco de contrair qualquer doença infectocontagiosa. 
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Usamos preservativo até o ano passado quando decidimos que queríamos ter um filho. Estamos tentando essa gravidez desde esse período. Mas, confesso que para mim, o sexo sem camisinha ainda não se tornou confortável. Talvez chegue um momento, que mesmo que o casal resolva ter filhos, eles optem por fazer inseminação artificial ao invés de sexo desprotegido.

Então, realmente não me sinto confortável em deixar os cuidados com a minha saúde também nas mãos de uma outra pessoa. Sinto que esse protagonismo deve estar nas minhas mãos. Isso implica dizer que acho imprescindível usar preservativo, mesmo no meu caso, numa relação estável de mais de 17 anos. E eu cobro sim. Vai usar sim, ou não há sexo! É o mínimo que eu posso fazer por mim. Meu corpo minhas regras.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Instinto materno, eu não tenho!



Sobre a maternidade, algumas questões aprendi na prática ou no susto, outras eu fui absorvendo das experiências que nunca tive, mas pude observar de longe.  Possivelmente, eu ainda não tenha a exata noção do que representa maternar, contudo, me permito avaliar, com relativa precisão, tudo o que a maternidade representa: todas as renúncias, as horas sem dormir, as despesas, o desafio da educação, as preocupações que sempre estarão as espreitas à cabeceira da cama... Enfim, todas essas questões práticas que tão facilmente não damos conta ou levamos em consideração quando somos muito jovens.
Não quero dizer que a maternidade seja um inconsequente ímpeto juvenil, muito embora não possa negar que eventualmente chega a sê-lo. Obviamente, estamos imersas numa cultura e ninguém, absolutamente ninguém, passa por ela ilesa. E essa cultura influencia e direciona todas as nossas decisões e nos obriga a fazer coisas sem antes refletir sobre elas. Então não é difícil compreender porque grande parte de nós mulheres tendemos a enfrentar a maternidade com a simplicidade de quem vai brincar de boneca, principalmente quando ainda somos muitos jovens. Afinal, o nosso condicionamento começa ocorrer na infância. Somos desde cedo submetidas à ideia de que a nossa função primordial é nos tornarmos mães, que só nos tornamos plenas após nos tornarmos mãe. E se negar a exercer essa função fatalmente nos leva a sermos julgadas egoístas, narcisistas ou mulheres infelizes. Eu já nem sou capaz de determinar quantas vezes fui tratada como egoísta por afirmar que não queria ter filhos. Também não esqueço as vezes que, por conta disso, me disseram que nunca iria me tornar uma mulher completa, conhecer o amor verdadeiro, que eu era uma pessoa amarga e cruel com meu marido por não permiti-lo se tornar pai.
Particularmente, devo confessar que nunca sonhei com a maternidade, em nenhum momento esteve entre minhas prioridades me tornar mãe. Mas, talvez tenha, por algum tempo, acreditado que havia nascido com o tal instinto materno e que ser mãe poderia ser o melhor que eu podia me tornar. Acho que assim como eu quase todas as mulheres, em algum momento de suas vidas, acreditaram nisso, outras nunca deixam de acreditar. Confesso que, em muitos momentos, isso me fez infeliz, até mesmo quando uma mulher me dizia para tocar em sua barriga para sentir o bebê e aquilo me incomodava. Sempre me senti profundamente desconfortável em tocar barrigas grávidas.
Honestamente, acho um grande equívoco essa idealização do instinto materno, a crença que toda mulher sabe exatamente como cuidar e educar uma criança, que este conhecimento e amor incondicional estão no DNA feminino. Por muito tempo me senti culpada por não sentir esse tal instinto materno. Acho que muitas mulheres que não condicionaram sua completude ao exercício da maternidade em muitas ocasiões se sentiram culpadas e socialmente inadequadas. 
Por outro lado, quem cede às convenções, em muitos casos, se deparam com uma realidade com a qual não está preparada para conviver. Mesmo nessas circunstâncias há um preço muito alto a se pagar. Para manter inabalada a crença de que o amor materno supera tudo e compensa todo sofrimento ou dor, pagamos com o nosso silêncio, a ocultação das nossas dores, dilemas, dúvidas e muita insegurança. Os conflitos que as mães sofrem são completamente abafados, se tornam tabus. Durante a minha vida inteira eu ouvi poucas mulheres reclamarem da maternidade em si, elas reclamam constantemente dos filhos. Então eu pensava: é só saber educar para tudo sair perfeito e ninguém precisaria reclamar nem mesmo das filhas ou filhos. Mas, não se tratava disso, trata-se de tabu. Qualquer mulher sabe que, ao se tornar mãe, sequer pode reclamar do lado ruim da maternidade sem correr o risco de sofrer olhares de reprovação, ser julgada péssima mãe, ou ser acusada de estar maculando a santíssima função de maternar. Reclamar das obrigações de ser mãe é, desde sempre, socialmente inaceitável. E por conta dessa cultura, a gente cresce achando que ser mãe é somente a coisa mais linda que nós mulheres podemos nos tornar, que é, nada além, de maravilhoso. Somos condicionadas a acreditar que não há nenhum ponto negativo. Eis a receita da frustração.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

Carne com bastante osso



Resultado de imagem para prato vazioNa nossa casa eram servidas somente duas refeições, o almoço e jantar. Pela manhã só tomávamos café preto, eventualmente eu podia comer pão. Contudo, como havia dinheiro somente para meio pão apenas eu comia. A gente só comia carne uma vez por semana. Então, no sábado, por volta das nove horas, meu avô apontava numa esquina próxima a nossa casa trazendo um pacote envolto num jornal amarrado com barbante e sujo de sangue. Era um pedaço de carne com bastante osso. Seria mais justo dizer que era osso com o que sobrou da carne, quase comumente um pedaço de costela. Minha avó o temperava somente com um pouco de coloral, pimenta de cheiro e cozinhava boiando em água. Eram uns dez litros de água para meio quilo de osso. Parte do caldo era reservado para fazer o pirão escaldado que tanto meu avô gostava. Depois que o cozido esfriava se formava uma espessa camada de gordura amarela que encobria tudo aquilo estava submerso. Caso esquecêssemos um garfo no recipiente seria possível remove-lo juntamente a camada inteira de gordura em forma de pirulito apenas puxando o garfo pelo cabo.
A visão, o sabor e cheiro dessa comida me embrulhavam o estômago. Quando não me restava outra opção, que não me servir dessa iguaria, eu permanecia por horas com o forte sabor de sebo encerrado na boca. Como não fosse suficientemente torturante ser obrigada a ingerir aquele alimento tão mal preparado minha avó ainda removia a gordura que boiava na panela e guardava para “temperar” o feijão no decorrer da semana. É quase desnecessário dizer que eu odiava comer esse e outros pratos que nos eram servidos. Entretanto, era comer aquilo ou ficar com fome. Não eram somente os alimentos que eram ruins, era a cozinheira, primordialmente, o pior ingrediente. Ela teria o dom de tornar um filé mignon, uma lagosta ou camarão alimentos indesejáveis.
Por isso, quase todos os dias eu fugia de casa no horário das refeições. Naturalmente, eu ia para algum lugar onde eu pudesse comer alguma menos ruim que as gororobas servidas por minha avó. Então, minutos antes das refeições eu chegava à casa dos vizinhos. Ficava de pé com as mãos voltadas para trás, a direita segurando o cotovelo esquerdo e a esquerda segurando a parte de trás da saia. Fazia aquela cara de criança faminta – ou melhor, eu tinha cara de criança faminta – até que a dona da casa se comovia e me servia. Lamentavelmente, nem sempre eu conseguia fugir na hora das refeições ou a tática funcionava. Entretanto, quando ela funcionava eu comia num desespero e numa pressa de chamar a atenção. Cada refeição que eu fazia fora de casa parecia que seria a ultima. Eu comia muito, comeria tanto quanto me servissem.
Dentre as vizinhas, que se compadeciam da minha chantagem emocional, de uma em especial eu nunca esquecerei. Era uma senhora um tanto desapegada, generosa, farta e, na mesma medida, mesquinha, hipócrita, traiçoeira, simulada e cruel.  Ela era suficientemente generosa ao ponto de quase sempre me oferecer e servir refeições e, portanto, ela era a minha escolha predileta. No entanto, sua generosidade era invariavelmente acompanhada de boas seções de humilhações. Essa senhora, Dona Aparecida, jamais deixava de fazer comentários constrangedores enquanto eu comia, “Come devagar que a comida não vai fugir não”, “Parece que nunca viu comida”, “Come bicha rea. É mesmo uma morta de fome!” e ainda hoje, volta e meia, alega que eu vivia “para morrer de fome” e que nem pareço “aquela”, “daquele tempo”.
Embora ainda fosse uma criança, eu percebia o tom pejorativo e ofensivo de alguns dos seus comentários. De qualquer forma, eu acreditava que me humilhar era seu direito. Bem, aceitando ou não, compreendendo ou não os ataques, eu tinha mais fome do que orgulho. Então, eu os ignorava ou os engolia tendo em vista poder matar a fome ou simplesmente poder experimentar algo diferente.
Ao retornar para casa e encontrar minha avó ela perguntava se eu não queria almoçar, eu dizia que não, ela desfilava uma tira de xingamentos, mas acabava me deixando em paz depois de me colocar diante de uma porção de louças para lavar ou ir irritar meu avô com um comentário qualquer.
Bem, como disse anteriormente eu não a esqueço, e jamais irei esquecer essa senhora que “generosamente” matava minha fome, porque ela continuou me alimentando e me humilhando tempo suficiente para eu perceber que comida nenhuma pagaria por aquele tipo de ultraje. É óbvio que não havia generosidade no seu gesto, ela me alimentava unicamente com a finalidade de me expor ao ridículo, de ter alguém para poder espezinhar.
Ela era uma criatura infeliz, uma alcoólatra fracassada, insatisfeita com a vida, que precisava humilhar quem quer fosse para que pudesse se sentir melhor. Ela acordava para beber e dormia porque era derrubada pela bebida. Não trabalhava fora e ainda assim não cuidava satisfatoriamente dos filhos ou da casa, mesmo tendo empregada doméstica. Sem contar que vivia num casamento infeliz. Apesar de o alcoolismo ser uma doença, de um casamento bem sucedido não depender somente da vontade e do empenho de um dos cônjuges e de uma casa arrumada não ser garantia de sucesso de ninguém, o seu fracasso não pode ser usado para justificar o seu caráter leviano. No entanto, no final das contas, tudo é uma relação de causa e consequência. Eu até entendo que ela não seria completamente responsável pelo tipo de vida que levava. Agora é fato que eu, que sequer teria alguma gerência sobre a minha vida, teria alguma responsabilidade pelos infortúnios que ela passava.   
No entanto, vamos considerar que, talvez, ela tentasse ser uma pessoa melhor me dando um bocado de comida. Mesmo assim, seu caráter mesquinho falava mais alto. Eu sempre era servida depois que todos fossem servidos e quando sobrava comida. Quando não sobrava me restava ficar apenas os assistindo comer. Quando ela fazia aniversários em sua casa eu nunca, jamais, era convidada. Mesmo assim, excepcionalmente, quando eu fugia da minha avó – que me proibia de “ficar pelas biqueiras” das casas enquanto aconteciam festas para as quais eu não havia sido convidada – e era vista me esgueirando pelo portão alguém acabava me convidando a entrar.
Embora eu acompanhasse de perto todos os preparativos – da confecção dos convites a preparação das lembrancinhas e comidas – apesar de me insinuar bastante eu nunca era convidada para as festas. Mesmo assim, eu partilhava da mesma ansiedade que os convidados e os aniversariantes sentiam. Minha ansiedade atingia o nível máximo no anterior a festa, quando eu perdia o sono pensando em tudo que poderia acontecer. Quando finalmente era vencida pelo sono os meus sonhos eram povoados por balões, chapeis de festa, língua de sogra, refrigerantes e muito bolo. No seguinte acordava cedo, reservava minha melhor roupa e, pouco antes das dezessete horas, eu lavava o rosto, passava um pano molhado por entre as axilas, penteava desajeitadamente o cabelo, me vestia e ficava na expectativa de ser chamada para desfrutar um pouco da diversão e das guloseimas. Algumas vezes eu não conseguia fugir aos olhares da minha avó e era obrigada a me recolher mais cedo. O que me levava a dormir era o cansaço de tanto chorar.
Quando eu conseguia ser mais esperta que minha avó, ou quem sabe, quando ela propositalmente me deixava ser mais esperta, eu acabava indo parar nas pistas de dança repletas de balões, meninas e meninos dançando ao som do Balão Mágico, Xou da Xuxa, comendo docinhos e tomando refrigerante. Na hora dos parabéns eu me encostava bem à mesa para garantir que eu ganharia uma lembrancinha e me fosse servido um pedaço de bolo. Quase sempre eu era a última a ser servida e receber a lembrancinha. Normalmente as lembrancinhas eram confeccionadas somente para aqueles que haviam sido formalmente convidados.
Bem, o tempo passou, as coisas mudaram, eu mudei. Mas, lamentavelmente, Aparecida não mudou muito. As experiências pelas quais passou – grande parte delas muito ruins – não a ensinaram nada. Ela continua a mesma pessoa traiçoeira, simulada e escrota. Certa ocasião, enquanto eu dirigia pelo bairro onde morávamos – ela continua morando na mesma casa onde eu passei por tantas humilhações – em busca de uma imóvel para comprar eu a encontrei bebendo sentada na calçada da casa à frente da sua.
Dirigia devagar procurando placas de venda quando ela me avistou e me convidou para descer do carro e lhe falar. Atendi ao seu pedido e fui me sentar ao seu lado. Tão logo me sentei ela me solicitou que lhe pagasse uma cerveja. Mandei lhe trazer duas e enquanto ela alimentava seu vício a ouvia dissertando pela enésima, agora para duas pessoas que eu acabava de conhecer, como havia sido a minha infância, de como era magra, descuidada, de como ninguém achava que eu iria “dar pra alguma coisa”... Ela não economizava na dramaticidade. Falava que eu não tinha o que vestir, que vivia nas casas em busca de comida e me escondendo atrás portas com medo de tudo. Ressaltava que, porém, atualmente não havia quem dissesse “quem fui eu”.
Talvez a irritasse o fato de não me causar constrangimento algum as revelações a cerca da minha história de miséria e humilhações. Então, ela repetia de forma jocosa algumas histórias da minha infância e adolescência e da minha relação com minha avó. Eu apenas ria. Infelizmente, ela não compreende que ser muito pobre ou nascer numa família desajustada não é uma escolha, é uma fatalidade. Já, passar a vida inteira sendo uma pessoa medíocre ou mau caráter aí sim é uma escolha. Uma péssima escolha, vale ressaltar!
Era visível a satisfação que ela sentia ao relatar a minha antiga condição. A mim estava claro o quanto era doloroso para ela perceber que nada do que ela dizia me atingia e que tudo aquilo que passei não me assombrava mais. Eu percebia o quanto era difícil para ela perceber que eu não era mais aquela pessoa indefesa e vulnerável e que ela não poderia usar sequer seu poder econômico para me humilhar. Pelo contrário, finalmente eu podia retribuir a “generosidade” que ela teve comigo.
Enquanto conversávamos pedi para uma das garotas que lhe fazia companhia antes da minha chegada e que eu acabara de conhecer para ir pegar um sanduiche e um refrigerante para mim na mesma lanchonete onde foi comprada a cerveja. Aparecida me perguntou se eu poderia pedir outro sanduíche para ela. Orientei a moça para que trouxesse dois sanduíches e um refrigerante. 
O pedido chegou e continuamos conversando, já que todas as vezes que esbocei movimento para ir embora ela insistia para que eu ficasse mais um pouco e, como com tempo livre naquela tarde, acabei cedendo a pressão. Também devo confessar que a situação estava bem divertida e eu daria um braço para permanecer ali e ver até onde aquele conversar iria nos levar. Não me incomodava sua presença, muito menos a sua conversa sobre o meu passado e suas perguntas sobre minha condição atual. Já as minhas revelações a deixavam visivelmente contrariada, a incomodava saber que eu estava bem. A naturalidade com que falava sobre as coisas que fazia e que havia feito e até mesmo sobre meu crescimento pessoal e profissional lhe causava um despeito sem tamanho. Até o tom da sua voz denunciava o desconforto que ela sentia. Mesmo assim ela não o parava de me fazer perguntas a meu respeito.
Quando finalmente a conversa se esgotou e conclui que ali nada mais me interessava resolvi partir. Agradeci pela companhia agradável de todas e me despedi. Caminhei até ao meu carro, liguei o motor e, finalmente, fui arrumar o retrovisor. Ao olhar em direção ao local onde estávamos sentadas pelo espelho do retrovisor a avistei com o dedo médio em riste. A encarei, sorri mais uma vez e movimentei a mão direita dando adeus. Conclui o aceno dizendo “Até mais Aparecida”. A sua expressão facial jamais poderá ser descrita. Apenas me arrisco dizer que revelava um misto de desapontamento, vergonha e medo. Fui embora rindo muito. Nunca mais a vi.