terça-feira, 1 de julho de 2014

Como relativizar a violência contra a mulher



Ontem deixei de lado uma porção de coisa que precisava fazer pra ficar atenta ao Fantástico. Aguardava uma matéria especial sobre abusos e violência cometidos contra a mulher no Líbano. A chamada me pareceu extremamente interessante e eu não perderia a reportagem por nada. No entanto, antes de falar sobre o patriarcado no Líbano a emissora levou ao ar outra matéria que me deixou rachando de raiva "Brasileiros e turistas aproveitam a Copa do Mundo em clima de azaração". Como pode uma emissora de TV nos “vender” daquela forma em cadeia nacional sem o menor pudor?

Não é de hoje que somos “vendidas” pela grande mídia como mercadorias, tem até garota “Tipo exportação”. Vejam o caso das mulatas que tanto fazem sucesso no exterior dançando samba entretendo gringos e que a televisão expõe, principalmente a bunda em closes desconcertantes. Não concebo que, enquanto lutamos bastante para desconstruir à péssima imagem da mulher brasileira (propagada no exterior como mulheres “dóceis”, e portanto fáceis ou acessíveis sexualmente) que enquanto fazemos campanha pra acabar com o turismo sexual e a exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes por esse segmento a Rede Globo exiba uma matéria fazendo festa com assédio de gringos às nossas mulheres. Uma matéria de péssimo gosto, onde a “paquera” não só é estimulada (como se precisasse de estímulo) como é ridiculamente tratada como uma partida de futebol (tudo em nome da copa), os produtores do programa providenciaram até dicionário da paquera pra facilitar a vida dos gringos. 
Como não poderia deixar de ser, arranjaram até uma jeito de banalizar a sexualidade e o comportamento femininos ao exibirem uma garota que se convencionou chamar de periguete. Tinha inclusive de expô-la sambando numa roupa minúscula e sob o crivo e aprovação de um macho que lhe deu carta branca pra exibir o corpo, excepcionalmente em virtude da copa (como se precisássemos de aprovação masculina para sermos ou agirmos como quisermos). Não vejo nenhum problema na mulher exibir o corpo, tenho problemas com a forma que essa mulher é exposta em rede nacional.
Como se não desse pra ficar pior, ainda rolou outra matéria onde um repórter resolveu fazer uma campana de 24 horas em Copacabana (Rio de Janeiro) para acompanhar o movimento de estrangeiros na orla e de quebra aproveitou para entrevistar, numa zona de prostituição, garotas de programa que ganhavam entre 4 e 7 mil Reais por semana (isso mesmo, por semana) realizando em média 4 programas por noite, ou eventualmente 5. Sinceramente, não acredito ser apropriado, no momento de um mega evento como esse que estamos promovendo e diante da miséria ou da extrema miséria que muitas meninas vivem publicizar ganhos elevados como esse em atividades como a prostituição. 

Não é difícil imaginar que uma garota que vive sem qualquer perspectiva e que muitas vezes sequer sabe o que terá pra comer logo mais (ou que até tenha, mas que tenha sonhos de consumo inatingíveis, mesmo que temporariamente) não se veja seduzida em ganhar 400 reais em uma hora e, como a televisão faz parecer, com homens “bonitos, ricos, legais e muito interessantes” que, de repente, um deles possa, pelo menos provisoriamente, tira-la da miséria ou quiçá leva-la embora do país. Aos hipócritas de plantão um aviso, a prostituição pode ser sedutora sim e nós sabemos disso, afinal muita gente faz questão de frisar que “é um dinheiro que se ganha fácil”. 
O que a reportagem deixou de mostrar é que muitas dessas garotas são obrigadas a fazerem sexo sem camisinha, algumas delas, quando se recusam a prosseguir com o programa, são estupradas, algumas vezes são espancadas, roubadas e sofrem diversos tipos de violência. Sem levar em conta que o evento está chegando ao fim e juntamente com o retorno dos times à suas casas irão retornar também os torcedores e com eles a “fonte de lucro”. E quem se envolveu com a prostituição especialmente para a copa o que fará a partir de então? 
É preciso não esquecer que a prostituição é uma atividade envolta num estigma que irá acompanhar a mulher por toda a sua vida. Ver-se envolta nesse universo pode dificultar a vida de muitas garotas, inclusive, de muitas delas que deixaram suas famílias em cidades pequenas e migraram para as cidades sedes seduzidas pelo dinheiro dos gringos. Enfim, o foco desse post nem era esse assunto mas, ainda assim, ele estava relacionado ao assunto principal, pois enquanto a Globo exibia em tom de festa o turismo sexual e o assédio de estrangeiros às brasileiras os telespectadores aguardavam a reportagem em que a emissora esboçava críticas ao Líbano e o patriarcado no país. Uma tremenda incoerência, afinal, a objetificação do corpo feminino, o turismo sexual, o assédio não seriam aspectos do patriarcado extremamente arraigado na nossa sociedade? Isso sem levar em consideração a naturalização do fetiche ao homem estrangeiro, que eu considero temerário. 
Bem, nem de longe meu comentário tem a intenção de naturalizar o machismo no Líbano e a violência cometida contra a mulher nesse país. Meu comentário é uma tentativa de demonstrar que o patriarcado no nosso país parece ser tão legítimo que sequer se percebe quando ele está sendo reproduzido e, por isso, até fazem festa por ele. 
Mas, voltando à questão do Líbano, achei a matéria um tanto superficial, poderia ter focado mais nas causas da violência em si. Talvez isso tenha ocorrido porque às causas têm uma íntima relação com a religião e, como é facilmente perceptível, a programação da emissora sofre forte influência religiosa, inclusive do espiritismo, acho que por isso o tema tenha ficado meio que perdido nos efeitos, como se não houvesse legitimação desses abusos pela sociedade através dos princípios religiosos.
“No Líbano há 18 diferentes grupos religiosos e cada um dita suas próprias normas em assuntos como casamento, divórcio, guarda dos filhos, pensões e heranças. As vítimas de violência familiar estão atadas por rígidas leis religiosas, como as aplicadas em tribunais muçulmanos sunitas e cristãos maronitas, que praticamente as impedem de se divorciar. Os tribunais drusos e cristãos ortodoxos são um pouco mais indulgentes. Uma pesquisa com mais de cem libanesas, divulgada este ano pelo Centro Médico da American University de Beirute, indica que mais de dois terços sofreram violência verbal por parte de seus maridos, enquanto 40% foram vítimas de abusos físicos. A maioria das mulheres consultadas disse que nunca abandonariam o lar por medo de perder a guarda dos filhos, bem como o apoio financeiro e social que o casamento representa. [...] Temas como o casamento são regidos apenas por leis religiosas, que estabelecem importantes limitações. Ainda que um tribunal religioso sentencie a favor de uma mulher, a aplicação é complicada, apontou Nicole, uma maronita de pouco mais de 40 anos. Esta mãe de dois filhos fugiu de sua casa há dez anos porque o marido a torturava com cigarro acesso e choques elétricos. Segundo as normas maronitas, o marido sempre tem direito à guarda dos filhos a partir dos dois anos de idade. Por isso ela passou a ser uma ‘sequestradora’. Nicole, finalmente, ganhou o divórcio, e mais tarde a guarda e uma ajuda, mas seu marido até agora se nega a pagar. Ela ainda vive escondida com os filhos, e oito anos de medo e batalhas legais a marcaram psicologicamente: sofre de profunda depressão.” Envolverde.
Além de deixar de lado as causas da violência, o espaço dado a dançarina tinha que finalidade mesmo? Não entendo o motivo de exibir por quase metade da matéria a brasileira que tinha de fazer trimestralmente exames de sangue para provar que não havia sido contaminada com HIV e ou DST. Não estou deslegitimando a violência de que ela fora vítima, mas achei despropositadas as cenas de dança do ventre em associação à violência contra a mulher. Então o improvável acontece, cenas de dança do ventre são intercaladas ao depoimento de uma jovem sobre dois estupros que sofreu. Com isso a gravidade do problema perdeu completamente o sentido. Sem contar que antes algumas garotas festejavam a grana que ganhavam com a prostituição e outra se reivindicava periguete dançando samba. Não vejo como poderia ficar pior. Acho melhor a Rede Globo não tentar levantar a bandeira em defesa à mulher. Porque vamos combinar que ela relativizou pra caramba o grave problema contra a mulher nos países muçulmanos.
     

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