segunda-feira, 9 de junho de 2014

O que eu pensava sobre mim?

Sem querer eu vivenciava o poema do Fernando Pessoa – Eu era uma poetisa, e como “O poeta é um fingidor, fingi tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente” – E, eu jamais me reconheci inteligente, mas me sentia o suficiente pra enganar as pessoas de que realmente o era. Apesar de ouvir por toda a infância que era imprestável ou preguiçosa não achava que fosse. Pelo contrário, penso que era criativa demais e as atividades cotidianas não me atraiam, entediavam-me. E em meio a todas essas contradições, de repente, eu já não sabia exatamente quem ou que eu era. Mas como venho repetindo nas minhas postagens pessoais, convenceram-me que era ruim ou que não iria prestar e confortavelmente vesti o personagem da criatura atrevida, malcriada e encrenqueira. Só não compreendo por que cargas d’água eu agia tão tentava enganar tentando me passar vez por outra por garota prodígio, afinal, todos diziam saber dos meus defeitos. Cheguei a ouvir de um tio, há algum tempo atrás, que achava que eu iria me tornar prostituta. 

Compreendo que me encontrava complemente enredada pelos rótulos que me envolviam, que não enxergava o que realmente se passava comigo ou os meus sentimentos, enxergava apenas aquilo que me mostravam de ruim. Qualquer elogio a minha inteligência eu os imaginava como resultado da minha capacidade de ludibriar, habilidade que seria mais um dos meus muitos defeitos. Como se eu realmente tivesse plena consciência de mim e não olhasse pra mim através do quedissessem sobre mim. Apesar de supostamente saber que eu “era um caso perdido” e que não tinha “reputação alguma” pra zelar eu vestia a máscara da boa menina e encarava a farsa de ser, por alguns minutos, atenciosa, meiga e obediente. Pode não fazer sentido, mas diante da opressão cada um encontra as armas com as quais consegue lutar melhor. 

Os anos passaram e eu já havia há muito desistido de ser boa moça e me tornado definitivamente o símbolo da rebeldia. Já havia assumido que não me importava com nada, que não poderiam esperar coisa alguma de mim, que era egoísta e que era um indivíduo vivendo só e por si. Enfim, havia ligado o botão do foda-se o mundo que eu vou não passar a vida toda dependendo da aceitação de quem sequer me reconhece como pessoa e, pra minha surpresa, de uma hora pra outra, o meu niilismo começou a ser considerado virtude. Mas como assim? Eu digo foda-se o mundo, assumo que sou rebelde mesmo, não respeito regras, não dou a mínima pra ninguém e tem gente pensando que criei juízo? – Para o mundo que quero entender isso direitinho.

Depois de tantas humilhações, de tanto sofrimento, eram minhas regras, meu mundo, minha maneira de encarar a vida, mesmo que desdenhando dela. Simplesmente porque dizia o que pensava sem me importar em magoar ou chocar, fazia o que deveria ser feito, não me importando com as consequências que muita gente passou a me respeitar, principalmente minha família. Embora achasse que parte desse respeito tivesse relação com o dito “doido não se contraria” não deixava de considerar que outra parte me bajulava porque conseguia me sobressair nas atividades que realizava. Finalmente não era a menina carente, vulnerável e desprotegida, era uma mulher, decidida, feroz e que, ao invés de precisar de dinheiro e cuidados, ganhava o suficiente pra se sustentar – até vez por outra ajudar algum parente numa dificuldade – e podia auxiliar no cuidado com os outros.

Apesar disso, por conta de toda a minha altivez e raiva, é óbvio que desagradei um bom numero de pessoas, que criei inimigos, que me machuquei e magoei muitas pessoas. Talvez, exatamente, por tê-las magoado me mantive sã, não deixei que ninguém me roubasse a identidade ou se interpusesse entre mim e a minha vontade de não ruir. Não obstante os percalços, não me fixava nos resultados negativos, sempre levantava e seguia em frente. 

Eu parecia ser muito forte, ter respostas e solução pra tudo e por isso minha família de repente achou por bem mudar completamente a visão que tinha de mim, inacreditavelmente, passaram e me considerar uma referência. Além disso, passaram a me perceber como uma criatura inquebrável. O gozado é que não modifiquei nada em meu comportamento, eu continuava sendo a mesma porralouca de sempre. Mesmo assim, o que antes era atrevimento tornou-se coragem, minha rebeldia passou a ser encarada como ousadia. E como passe de mágica, bluummm – a doida tomou juízo – passou a ser consultada e solicitada para dirimir conflitos, ajudar na condução de questões delicadas e ajudar nos momentos difíceis.
Mas, à medida que o conceito que minha família tinha sobre mim paulatinamente subia a sensação de que eu não tinha muito equilíbrio emocional aumentava na mesma proporção. Eu nunca me vi como uma mulher corajosa. Pelo contrário, eu enfrentava tudo sem ter muita noção do que estava acontecendo. Afinal, alguém me deu opção a não ser o enfrentamento? 

Pode parecer bastante clichê – mas insisto – avalio que eu tinha duas opções; uma era negar a realidade e ai me esquivar de enfrentar tudo, a outra era não varrer as dificuldades pra baixo do tapete. Bem, eu até poderia negar as dificuldades, mas, de que isso ia me adiantar mesmo? É lógico que não adiantaria nada fugir dos problemas, porque iria sofrer por conta deles do mesmo jeito. Eu tinha uma vida inteira pra viver, muito pouco juízo e quase nenhum tempo a perder com estratégias políticas ou com pensamentos filosóficos. Nem consigo dimensionar o tempo que considerava ser obrigada a desperdiçar num trabalho que não suportava e na companhia de pessoas que eu simplesmente desprezava. Sem contar com as horas inutilizadas dando conta da minha vida para meia dúzia de vizinhas que adoravam cuidar do meu dia-a-dia e inventar muitas histórias a meu respeito. – Pausa para uma correção; posso ter muitos defeitos, mas, hipocrisia não consta no rol deles, por isso preciso reconhecer que nem todas as histórias eram inventadas, mas, juro que a cada uma delas elas sempre deram um jeito de aumentar um ponto ou fantasiar sobre elas.
Também não poderia deixar de fora a energia desperdiçada com os cafajestes que surgiam na minha vida se dizendo príncipes que iriam me resgatar da torre, me calçar um sapatinho de cristal ou me despertar de um longo sono, mas que depois da cama e de um gole de ilusão sumiam deixando em mim um vazio cada vez maior e um enorme abismo transbordando de desesperança. Foram sonhos e expectativas investidas que não duraram mais que um mês, uma semana ou uma noite. Foram planos de redenção que não resistiram a um telefonema que ficou por ocorrer, a promessas de retorno que não se concretizaram ou a uma fatídica e inútil espera num ponto encontro. Foram horas e mais horas alimentando a esperança de que dessa vez seria diferente, muitas outras assistindo a esperança minguando e se tornando cada vez menor, e menor, e menor até que não restassem dúvidas de que não seria diferente ainda. Sem contar com os momentos que me pegava sofrendo um pouco de vergonha e medo, resquícios dos tempos de espancamentos dos quais fui vítima. Mas eram justamente as lembranças dessas surras e de tudo que vivi que me faziam acreditar que eu poderia enfrentar qualquer problema e permanecer de pé. Poderiam me vergar, poderiam me ferir e até me fazer sangrar, mas nunca me quebrar.

No entanto, eram tantos sentimentos atropelados, tantas experiências frustrantes que não me deixavam tempo pra elaborar frases gentis, atitudes carinhosas ou “mentiras sinceras”. Por fim compreendi que, por causa de tudo que vi e vivi, não conseguia ser meiguinha, fêmea passiva ou sensata o bastante pra manter a língua dentro da boca e evitar as centenas de problemas que arrumei por conta da língua afiada. Ainda tenho alguns dos defeitos citados acima, em menor grau é claro, mas isso não me poupa de ter problemas em decorrência deles. 

Fazendo um raio X bem profundo, eu sofria de um misto de revolta, raiva, falta de educação, insensatez, além de uma boa dose de atrevimento e excesso de energia bem típicos da juventude. Não chamaria o conjunto dessas características de coragem. Coragem é a ousadia de optar pela montanha russa ao invés de ficar em terra firme. A mim restava apenas vontade de não cair, de permanecer de pé.  Precisava sentir que em algum momento pisaria em terra firme. Necessitava sentir fluir através de mim fios de lucidez. Embora soubesse que a qualquer momento pudesse surtar e ficar pelo meio do caminho.

Carregava dentre de mim um abismo que aos poucos me absorvia. Porém, não parava a cada dois segundos pra sentir pena de mim mesma. Estava ocupada demais tentando sobreviver. Sempre agi de forma reativa, nunca planejada e jamais de forma estratégica. Descobri há pouco tempo que nunca nutri um sonho realmente meu. Eu sempre fiz o que as pessoas me diziam que era possível ou aquilo que elas disseram que não conseguiria fazer. Nunca havia tomado decisão alguma no sentido de optar pelo que queria de verdade sem que fosse forçada a isso. Portanto, nunca acreditei em mim e nunca pensei que pudesse fazer algo além de decepcionar as pessoas que me “amavam” ou joga-las na cara que estavam erradas ao meu respeito. Ainda hoje sou movida a desafios e preciso muito de reconhecimento, mas a maturidade me ajuda a avaliar as consequências dos meus atos e consigo planejar melhor onde quero chegar. Entretanto, basta me instigar com um desafio que desço do salto e parto pra luta. Já por reconhecimento... Não estou na mesma onda. Embora tenha ganhado muito equilíbrio e trabalhado bastante minha autoestima ainda preciso de reconhecimento sim. Mas, diferentemente do que ocorria antes, não sofro quando ele não vem e muito menos sou movida por ele. Também aprendi a não me envolver com os problemas alheios e olhar pra mim com doçura e condescendência, sem o fetiche do heroísmo, bem como sem a obrigação de ser útil ou fofa. Enfim, me permitindo sempre e não dando muita importância ao que pensam a meu respeito. E onde essa autopercepção me levou? Permitiu-me ser mais feliz e tornar outras pessoas felizes. Enfim, acho que é isso que importa



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