Sem
querer eu vivenciava o poema do Fernando Pessoa – Eu era uma poetisa, e como “O
poeta é um fingidor, fingi tão completamente que chega a fingir que é dor a dor
que deveras sente” – E, eu jamais me reconheci inteligente, mas me sentia o
suficiente pra enganar as pessoas de que realmente o era. Apesar de ouvir por toda a infância que era imprestável ou preguiçosa
não achava que fosse. Pelo contrário, penso que era criativa demais e as
atividades cotidianas não me atraiam, entediavam-me. E em meio a todas essas
contradições, de repente, eu já não sabia exatamente quem ou que eu era. Mas como
venho repetindo nas minhas postagens pessoais, convenceram-me que era ruim
ou que não iria prestar e confortavelmente vesti o personagem da criatura
atrevida, malcriada e encrenqueira. Só não compreendo por que cargas d’água eu
agia tão tentava enganar tentando me passar vez por outra por garota prodígio,
afinal, todos diziam saber dos meus defeitos. Cheguei a ouvir de um tio, há
algum tempo atrás, que achava que eu iria me tornar prostituta.
Compreendo
que me encontrava complemente enredada pelos rótulos que me envolviam, que não
enxergava o que realmente se passava comigo ou os meus sentimentos, enxergava
apenas aquilo que me mostravam de ruim. Qualquer elogio a minha inteligência eu
os imaginava como resultado da minha capacidade de ludibriar, habilidade que
seria mais um dos meus muitos defeitos. Como se eu realmente tivesse plena consciência de mim e não olhasse pra mim através do quedissessem sobre mim.
Apesar de supostamente saber que eu “era um caso perdido” e que não tinha “reputação
alguma” pra zelar eu vestia a máscara da boa menina e encarava a farsa de ser,
por alguns minutos, atenciosa, meiga e obediente. Pode não fazer sentido, mas
diante da opressão cada um encontra as armas com as quais consegue lutar
melhor.
Os
anos passaram e eu já havia há muito desistido de ser boa moça e me tornado
definitivamente o símbolo da rebeldia. Já havia assumido que não me importava
com nada, que não poderiam esperar coisa alguma de mim, que era egoísta e que
era um indivíduo vivendo só e por si. Enfim, havia ligado o botão do foda-se o
mundo que eu vou não passar a vida toda dependendo da aceitação de quem sequer
me reconhece como pessoa e, pra minha surpresa, de uma hora pra outra, o meu niilismo
começou a ser considerado virtude. Mas como assim? Eu digo foda-se o mundo,
assumo que sou rebelde mesmo, não respeito regras, não dou a mínima pra ninguém
e tem gente pensando que criei juízo? – Para o mundo que quero entender isso
direitinho.
Depois
de tantas humilhações, de tanto sofrimento, eram minhas regras, meu mundo,
minha maneira de encarar a vida, mesmo que desdenhando dela. Simplesmente
porque dizia o que pensava sem me importar em magoar ou chocar, fazia o que
deveria ser feito, não me importando com as consequências que muita gente
passou a me respeitar, principalmente minha família. Embora achasse que parte
desse respeito tivesse relação com o dito “doido não se contraria” não deixava
de considerar que outra parte me bajulava porque conseguia me sobressair nas
atividades que realizava. Finalmente não era a menina carente, vulnerável e
desprotegida, era uma mulher, decidida, feroz e que, ao invés de precisar de
dinheiro e cuidados, ganhava o suficiente pra se sustentar – até vez por outra
ajudar algum parente numa dificuldade – e podia auxiliar no cuidado com os
outros.
Apesar
disso, por conta de toda a minha altivez e raiva, é óbvio que desagradei um bom
numero de pessoas, que criei inimigos, que me machuquei e magoei muitas
pessoas. Talvez, exatamente, por tê-las magoado me mantive sã, não deixei que
ninguém me roubasse a identidade ou se interpusesse entre mim e a minha vontade
de não ruir. Não obstante os percalços, não me fixava nos resultados negativos,
sempre levantava e seguia em frente.
Eu
parecia ser muito forte, ter respostas e solução pra tudo e por isso minha
família de repente achou por bem mudar completamente a visão que tinha de mim, inacreditavelmente,
passaram e me considerar uma referência. Além disso, passaram a me perceber
como uma criatura inquebrável. O gozado é que não modifiquei nada em meu
comportamento, eu continuava sendo a mesma porralouca de sempre. Mesmo assim, o
que antes era atrevimento tornou-se coragem, minha rebeldia passou a ser
encarada como ousadia. E como passe de mágica, bluummm – a doida tomou juízo –
passou a ser consultada e solicitada para dirimir conflitos, ajudar na condução
de questões delicadas e ajudar nos momentos difíceis.
Mas,
à medida que o conceito que minha família tinha sobre mim paulatinamente subia
a sensação de que eu não tinha muito equilíbrio emocional aumentava na mesma
proporção. Eu nunca me vi como uma mulher corajosa. Pelo contrário, eu
enfrentava tudo sem ter muita noção do que estava acontecendo. Afinal, alguém
me deu opção a não ser o enfrentamento?
Pode
parecer bastante clichê – mas insisto – avalio que eu tinha duas opções; uma
era negar a realidade e ai me esquivar de enfrentar tudo, a outra era não
varrer as dificuldades pra baixo do tapete. Bem, eu até poderia negar as dificuldades,
mas, de que isso ia me adiantar mesmo? É lógico que não adiantaria nada fugir
dos problemas, porque iria sofrer por conta deles do mesmo jeito. Eu tinha uma
vida inteira pra viver, muito pouco juízo e quase nenhum tempo a perder com
estratégias políticas ou com pensamentos filosóficos. Nem consigo dimensionar o
tempo que considerava ser obrigada a desperdiçar num trabalho que não suportava
e na companhia de pessoas que eu simplesmente desprezava. Sem contar com as
horas inutilizadas dando conta da minha vida para meia dúzia de vizinhas que
adoravam cuidar do meu dia-a-dia e inventar muitas histórias a meu respeito. –
Pausa para uma correção; posso ter muitos defeitos, mas, hipocrisia não consta
no rol deles, por isso preciso reconhecer que nem todas as histórias eram
inventadas, mas, juro que a cada uma delas elas sempre deram um jeito de
aumentar um ponto ou fantasiar sobre elas.
Também
não poderia deixar de fora a energia desperdiçada com os cafajestes que surgiam
na minha vida se dizendo príncipes que iriam me resgatar da torre, me calçar um
sapatinho de cristal ou me despertar de um longo sono, mas que depois da cama e
de um gole de ilusão sumiam deixando em mim um vazio cada vez maior e um enorme
abismo transbordando de desesperança. Foram sonhos e expectativas investidas
que não duraram mais que um mês, uma semana ou uma noite. Foram planos de
redenção que não resistiram a um telefonema que ficou por ocorrer, a promessas
de retorno que não se concretizaram ou a uma fatídica e inútil espera num ponto
encontro. Foram horas e mais horas alimentando a esperança de que dessa vez
seria diferente, muitas outras assistindo a esperança minguando e se tornando
cada vez menor, e menor, e menor até que não restassem dúvidas de que não seria
diferente ainda. Sem
contar com os momentos que me pegava sofrendo um pouco de vergonha e medo, resquícios
dos tempos de espancamentos dos quais fui vítima. Mas eram justamente as
lembranças dessas surras e de tudo que vivi que me faziam acreditar que eu
poderia enfrentar qualquer problema e permanecer de pé. Poderiam me vergar,
poderiam me ferir e até me fazer sangrar, mas nunca me quebrar.
No
entanto, eram tantos sentimentos atropelados, tantas experiências frustrantes
que não me deixavam tempo pra elaborar frases gentis, atitudes carinhosas ou “mentiras
sinceras”. Por fim compreendi que, por causa de tudo que vi e vivi, não
conseguia ser meiguinha, fêmea passiva ou sensata o bastante pra manter a
língua dentro da boca e evitar as centenas de problemas que arrumei por conta
da língua afiada. Ainda tenho alguns dos defeitos citados acima, em menor grau
é claro, mas isso não me poupa de ter problemas em decorrência deles.
Fazendo
um raio X bem profundo, eu sofria de um misto de revolta, raiva, falta de
educação, insensatez, além de uma boa dose de atrevimento e excesso de energia
bem típicos da juventude. Não chamaria o conjunto dessas características de
coragem. Coragem é a ousadia de optar pela montanha russa ao invés de ficar em
terra firme. A mim restava apenas vontade de não cair, de permanecer de pé. Precisava sentir que em algum momento pisaria
em terra firme. Necessitava sentir fluir através de mim fios de lucidez. Embora
soubesse que a qualquer momento pudesse surtar e ficar pelo meio do caminho.
Carregava
dentre de mim um abismo que aos poucos me absorvia. Porém, não parava a cada
dois segundos pra sentir pena de mim mesma. Estava ocupada demais tentando
sobreviver. Sempre agi de forma reativa, nunca planejada e jamais de forma
estratégica. Descobri há pouco tempo que nunca nutri um sonho realmente meu. Eu
sempre fiz o que as pessoas me diziam que era possível ou aquilo que elas
disseram que não conseguiria fazer. Nunca havia tomado decisão alguma no
sentido de optar pelo que queria de verdade sem que fosse forçada a isso.
Portanto, nunca acreditei em mim e nunca pensei que pudesse fazer algo além de
decepcionar as pessoas que me “amavam” ou joga-las na cara que estavam erradas
ao meu respeito. Ainda hoje sou movida a desafios e preciso muito de
reconhecimento, mas a maturidade me ajuda a avaliar as consequências dos meus atos
e consigo planejar melhor onde quero chegar. Entretanto, basta me instigar com
um desafio que desço do salto e parto pra luta. Já por reconhecimento... Não
estou na mesma onda. Embora tenha ganhado muito equilíbrio e trabalhado
bastante minha autoestima ainda preciso de reconhecimento sim. Mas,
diferentemente do que ocorria antes, não sofro quando ele não vem e muito menos
sou movida por ele. Também aprendi a não me envolver com os problemas alheios e
olhar pra mim com doçura e condescendência, sem o fetiche do heroísmo, bem como
sem a obrigação de ser útil ou fofa. Enfim, me permitindo sempre e não dando
muita importância ao que pensam a meu respeito. E onde essa autopercepção me levou?
Permitiu-me ser mais feliz e tornar outras pessoas felizes. Enfim, acho que é
isso que importa
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