Há
algum tempo rompi com o silêncio e resolvi falar abertamente que fui estuprada por duas vezes.
Mas só recentemente, bem recentemente, resolvi romper mais uma vez o silêncio e
contar que quase sofri um terceiro, foi “apenas” uma tentativa, que se houvesse
ocorrido após a publicação da nova lei do estupro seria caracterizada como
estupro. E agora, com a “modinha” de filmar estupros,
acho também que se àqueles escrotos tivessem um equipamento de filmagem
qualquer corria o risco de uma hora dessas topar acidentalmente com as
imagens do meu próprio estupro. Apesar de não ter sido penetrada, me marcou
muito e me deixou psicologicamente muito machucada.
Quem
sempre lê minhas postagens deve ter percebido que nunca relatei sobre como foram os
meus estupros. Eis um dos motivos; não quero nenhum escroto se masturbando lendo sobre os momentos de agonia que passei. No entanto,
pra não deixar assim muito vácuo a história da tentativa de estupro vou relatar
por alto o que aconteceu. Mas antes vamos entender um pouco todo o contexto
desta e de outras histórias.
Eu já
havia passado pelo segundo estupro e me sentia um lixo,
não só por conta disso, mas também porque passei a minha infância e adolescência
inteira achando que era inferior a todo mundo e que “não iria prestar pra nada”,
frase incutida na minha cabeça pela minha família e vizinhos que oportunamente
sempre a reproduziam para mim. Minha avó rotineiramente enfatizava desde cedo que eu
era “fresquinha”, isso porque eventualmente assistia aos programas da Xuxa nas
casas dos vizinhos e queria me vestir como ela e as Paquitas. Como a minha avó
foi uma mulher criada num contexto extremamente machista
ela entendia que a vontade que tinha de me vestir como a Xuxa poderia ser a expressão
do desejo de me tornar “vadia”, ou seja, eu seria um “projeto de vadia”. Cresci
alimentando um processo de autodepreciação tamanho que sequer me julgava capaz
de concluir uma tarefa, ou sentia que merecia ser como outras meninas ou ter os
mesmo “sonhos”, como por exemplo casar de véu e grinalda e constituir uma
família.
Então,
quando fui estuprada pela primeira vez, naquilo que foi a minha primeira experiência
sexual, meu mundo caiu por terra e eu me afundei ainda mais no buraco em que me encontrava. Logo, a bebida, o cigarro e o pouco cuidado comigo mesma se tornaram meu
refúgio. O segundo estupro ajudou a me afundar ainda mais. E, eu já nem sabia
mais o que era sentir dor. Já não conseguia mais identificar sequer o que era
violência. Já estava num estado tão grande torpor que achava que não habitava
mais esse corpo, eu só seguia em frente, comendo e andando sem me dar conta do
que ocorria comigo. Engravidei e abortei
sem perceber o que significavam essas situações. Até que sofri a fatídica
“tentativa de estupro” e ruí.
Eu estava
numa barzinho quando fui convidada por um carinha que conhecia de outras ocasiões,
porém do mesmo bar, a nos dirigirmos a outro barzinho, nas proximidades em
busca de continuar a diversão que houvera acabado no local que estávamos quando
os músicos encerram o show. Como frequentávamos o mesmo local e nos víamos sempre
eu topei pegar uma carona com ele sem medo algum. A caminho ele deu “carona” a
um amigo.
Não
demorou a perceber que a viagem de quatro de quarteirões possivelmente seria
abortada quando ao invés de tomar à direção da esquerda ele se encaminhou para a
direita da via. Eu, meio desconfiada, perguntei por que havia feito a conversão
contrária ao nosso destino. Ele deu uma desculpa que sequer lembro qual foi. O que
lembro bem é da sensação de que havia algo errado naquilo tudo e me desesperei
depois de uns 06 minutos de trajeto. Eles permaneciam calados enquanto eu
gritava e pedindo para me deixarem ir embora durante todo o restante da viagem.
Enfim, fui levada pra uma espécie de sítio na periferia da cidade e lá só não me
penetraram porque eu estava menstruada e sangrava muito. Mas se masturbaram enquanto
me olhavam pelada e me bolinavam.
Foram
momentos tão tensos que pensei que não sairia daquele lugar viva e acho que se
tivessem efetivamente me penetrado eles teriam me matado e enterrado meu corpo
naquele local. Sentia mesmo que não sairia viva daquilo. Terminada a sessão de
tortura, sem que eles emitissem palavra, me permitiriam me vestir, colocaram-me
de volta no carro e me deixaram num terminal de ônibus bem distante do local de
onde fui levada. Ao lado do terminal, largaram-me no meio fio como um saco de
lixo e arrancaram com o carro. Estava tão chocada, que sequer consegui anotar a
placa do carro ou lembrar o tipo.
Calada
e abatida, entrei no terminal, aguardei o ônibus e voltei pra casa. Como falei,
o silêncio que seguiu do retorno do terminal à minha casa, se desdobrou pelos os
dias seguintes e se entendeu até há alguns meses. Isso, porque eu ainda me sentia culpada
por ter estado num bar, ter bebido e por ter entrado naquele carro. Apesar
de compreender que não tive culpa por ter confiado mais uma vez sei que muita
gente vai afirmar que tive culpa. Afinal, eu já havia sido estuprada duas vezes
e ainda entrava no carro de um “desconhecido”, então é porque estava pedindo
pra ser estuprada, né?
Então,
quando vi o vídeo do estupro da garota de Pinhal – sim eu vi o vídeo, precisava
assistir pra ver a cara dos agressores, já que nos comentários rolava a
informação de que apareciam os rostos deles – lembrei que poderia ser eu
naquelas imagens e senti uma enorme angústia, por mim, pela garota e por todas
as outras que são julgadas como vagabundas, que mereciam ser estupradas
por estarem acompanhadas e confiarem em homens. Eu precisava ver a cara dos
agressores. Precisava ver que nenhum deles tem a expressão monstruosa como
muitos gostam de pintar. Precisava ver porque, como passe de mágica, meus
agressores não tinham cara, eu não conseguia lembrar os rostos deles, apesar de
saber que nenhum deles lembrava os retratos falados
comumente divulgados na mídia. Assim como os estupradores da menina de
Pinhal, os meus eram homens atraentes, bonitos, brancos e classe média.
O estupro
da adolescente de Pinhal
teria
ocorrido na madrugada do último domingo, na casa de um jovem. A adolescente
teria relatado a polícia que iria a uma festa com amigos, que acabou sendo
cancelada. Por causa do cancelamento, ela foi convidada a ir para a residência
de um adolescente, onde ingeriu bebidas alcóolicas e teria sido estuprada.
“A
família registrou uma ocorrência na noite de segunda-feira, na Delegacia de
Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) de Tramandaí. O documento foi
encaminhado na quinta-feira para a Polícia Civil de Balneário Pinhal, que
instaurou um inquérito para investigar o caso. A Polícia Civil de Balneário
Pinhal, no Litoral Norte, investiga uma denúncia de estupro de uma adolescente
de 17 anos. A vítima teria sido abusada por cinco jovens, três deles com
menos de 18 anos, e teve imagens íntimas divulgadas por meio de um
aplicativo para celular.” ZH Notícias.
O
que mais revolta nesses casos é que muitas vezes a culpa e o medo de
julgamentos nos levam a silenciar. Principalmente porque, mesmo dentro das delegacias,
a gente vai ter de conviver com os comentários maldosos e com insistência de
nos colocar como culpadas. Quando na verdade o que deveria estar em xeque seria
esse comportamento escroto, e muitas vezes estimulado pela sociedade, de tolerância
e compreensão de que o homem, o macho, é tarado mesmo, que ele tem impor sua
vontade, que se a mulher der mole ele tem de “meter a vara”, mesmo que pra isso
o cara cometa um crime. E ESTUPRO É CRIME, não é sexo, não é brincadeira, não é engraçado, não é prova de masculinidade, é crime. E um crime terrível e repugnante.
Só mais uma coisa, um aviso às mulheres que acham que estão imunes a esse tipo de crime; não fiquem falando besteiras do tipo “mulheres que se vestem feito vadias merecem ser estupradas”, “tava pedindo” ou qualquer outra expressão semelhante porque, lamentavelmente, os estupradores não vão lhe dispensar por conta da sua conivência com eles, ESTAMOS TODAS, INDISTINTAMENTE, VULNERÁVEIS A PASSAR POR UM ESTUPRO. O mínimo que podemos fazer é nos solidarizarmos umas com as outras e repudiarmos todo e qualquer tipo de violência contra nós mulheres.
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