sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A diferença entre transexual e travesti



(Por Daniela Andrade - ativista transfeminista)
Bem, eu sou uma mulher transexual, não estou presa em corpo errado, como se só o corpo das pessoas cisgêneras é que fosse correto.

Não nasci em corpo errado, nasci no meu próprio corpo, apesar da medicina psiquiátrica que nos toma como doentes mentais tentar o tempo todo essencializar a transexualidade e nos impor que alguém se transforme em transexual por conta do desejo de fazer uma cirurgia, o que é mentira.
 

Nem todas pessoas transexuais querem se operar, nem todas podem por diversos motivos, como problemas de saúde e nem todas conseguem se operar, já que temos de esperar décadas numa fila uma vez que no Brasil só há 4 hospitais públicos realizando a cirurgia de transgenitalização. Em SP se faz apenas uma por mês: há centenas de pessoas na fila.


Parem de associar transexualidade à cirurgias, ninguém é mais ou menos transexual por conta disso. A identidade de gênero é um constructo biopsicossocial e NINGUÉM tem o direito de decidir o nosso gênero.


Está lá nos princípios de yogyakarta que dizem respeito à legislação internacional que protege as pessoas LGBTs que a identidade de gênero é de autorreconhecimento soberano. Ou seja, só a própria pessoa é capaz de se reivindicar como transexual e ninguém tem o direito de falar que essa pessoa é mais ou menos transexual por isso ou aquilo.


Depois, travesti não é homem, travesti não é homem gay, travesti não é homem gay que se veste com roupas femininas. Apesar do senso comum burro e transfóbico propagar isso. As travestis (e não os travestis, pois conforme preconiza a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais, é preciso respeitar as travestis e tratá-las no feminino) são pessoas que nasceram e foram compulsoriamente registradas como homens, por conta de uma mera verificação genital - como acontece com todo mundo, e não se reconhecem como homens. Mas como uma conjunção entre o masculino e o feminino, um terceiro gênero, um não gênero ou simplesmente travesti.


Veja que NÃO TEM NADA A VER COM roupas, não são as roupas que definem a identidade de gênero de ninguém. Mesmo que você coloque um terno e uma gravata em uma travesti, ela continuará travesti, pois como já disse, a identidade de gênero é um constructo biopsicossocial.


E vamos lembrar que nem todo mundo nasce com pênis e vagina, há as pessoas intersexuais que nascem com genitália ambígua. Genital é uma mera parte anatômica, que NADA tem a ver com a identidade de gênero de ninguém, apesar de uma decisão política para hierarquizar a sociedade ter classificado e dividido o mundo em dois, apenas dois grupos: machos e fêmeas, com rígidas características para os dois lados, e ai de quem tiver uma característica que seja que não compreenda a ditadura do sistema sexo-gênero. Automaticamente a sociedade retira essa pessoa do grupo das identidades inteligíveis e o coloca no grupo das identidades abjetas.
 

A sociedade cissexista supervaloriza o genital como se ele tivesse poderes mágicos de decidir a identidade de alguém. Mas eu não saí da barriga da minha mãe sabendo que homem tem pênis e mulher tem vagina; aliás, eu nem sabia o que era um pênis e uma vagina: isso foi ensinado, foi violentamente e o tempo todo imposto para mim, para todos nós.


Portanto, parem de tomar como natural ter pênis e ser homem, ter vagina e ser mulher e inclusive esquecer as pessoas intersexuais - que não são et's. Meu gênero não está instalado no meu genital, pois a concepção de gênero muda de sociedade para sociedade, de tempos em tempos e se constrói também embasada em um discurso político que define o que são homens e mulheres e hierarquiza a sociedade por meio desse binário de gêneros.


A transgeneridade não tem a ver com corpos, os mesmos corpos que as pessoas trans possuem, as pessoas cisgêneras também possuem. A transgeneridade tem a ver com um discurso político. Há pessoas trans que estão de boa com seus genitais. É mentira que foi sendo propagada ao longo do tempo pela psiquiatria que nos patologizou de que toda pessoa trans odeia de morte seu genital. 

Inclusive há uma imposição social que diz que mulher tem vagina, é uma imposição violenta, se eu me reivindico como mulher e estou ouvindo o tempo todo que para ser mulher precisa ter vagina, é evidente que muitas mulheres transexuais vão reivindicar uma cirurgia: para inclusive serem menos discriminadas, mas as que descobrem que não são menos mulheres por não se submeterem a cirurgia não deixam de ser transexuais por conta disso.


Eu não nasci com sexo nenhum, eu nasci nua, com determinada anatomia e o resto foi imposição: tanto sexo quanto gênero são invenções e construções sociais. O sistema sexo-gênero não existe por que um ser metafísico ou a natureza contou para o ser humano que ele existia, mas foi o ser humano que achou por bem classificar e hierarquizar a sociedade. 


E essa hierarquização e classificação acontece lá no ultrassom, quando o médico diz que a mãe está grávida de um menino ou menina, essa é a primeira cirurgia que vamos todos passar na vida, uma cirurgia linguística. A frase: é menino ou é menina funda humanidade naquele sujeito que até então era apenas uma promessa. E a partir daí a sociedade ao redor daquela pessoa gestante vai criar toda uma rede de concepções e desejos para aquele ser que nem veio ao mundo ainda.

Ninguém é transexual e travesti ao mesmo tempo. A legislação internacional tem cada vez mais reconhecido que se dizer travesti ou transexual é algo que só a própria pessoa pode fazer. Se a pessoas se sente travesti, se reivindica como travesti, ela é travesti; o mesmo com transexuais. Simples assim. Agora, notaremos que há mulheres transexuais e homens transexuais. As mulheres transexuais nasceram e foram designadas como homens, mas se reivindicam como mulheres e os homens transexuais nasceram e foram designados mulheres, mas se reivindicam homens.


Já as travestis em sua suma maioria - sempre as travestis - nasceram e foram designadas homens mas não se reivindicam nem homens e nem mulheres, mas apenas e tão somente travestis, que seria uma fuga desse binário homem-mulher ou uma conjunção de ambos. Ainda que se sintam respeitadas sendo tratadas no feminino como qualquer mulher.
 

E lembrar que a identidade travesti só existe na América Latina, fortemente na América do Sul. Nos EUA, por exemplo, todo mundo que não se identifica com o gênero que lhe foi designado quando nasceu é tomado como pessoa transgênera. 
E só um mero detalhe, a palavra transexual é com um S só, apesar das pessoas muitas vezes escreverem com dois esses. Que só pode ser por que estão mais acostumadas a lerem e escreverem homossexual, essa sim com dois esses.


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