(Por Daniela Andrade - ativista transfeminista)
Bem, eu sou uma mulher
transexual, não estou presa em corpo errado, como se só o corpo das pessoas
cisgêneras é que fosse correto.
Não nasci em corpo
errado, nasci no meu próprio corpo, apesar da medicina psiquiátrica que nos
toma como doentes mentais tentar o tempo todo essencializar a transexualidade e
nos impor que alguém se transforme em transexual por conta do desejo de fazer uma
cirurgia, o que é mentira.
Nem todas pessoas
transexuais querem se operar, nem todas podem por diversos motivos, como
problemas de saúde e nem todas conseguem se operar, já que temos de esperar
décadas numa fila uma vez que no Brasil só há 4 hospitais públicos realizando a
cirurgia de transgenitalização. Em SP se faz apenas uma por mês: há centenas de
pessoas na fila.
Parem de associar
transexualidade à cirurgias, ninguém é mais ou menos transexual por conta
disso. A identidade de gênero é um constructo biopsicossocial e NINGUÉM tem o
direito de decidir o nosso gênero.
Está lá nos princípios
de yogyakarta que dizem respeito à legislação internacional que protege as
pessoas LGBTs que a identidade de gênero é de autorreconhecimento soberano. Ou
seja, só a própria pessoa é capaz de se reivindicar como transexual e ninguém
tem o direito de falar que essa pessoa é mais ou menos transexual por isso ou
aquilo.
Depois, travesti não é
homem, travesti não é homem gay, travesti não é homem gay que se veste com
roupas femininas. Apesar do senso comum burro e transfóbico propagar isso. As travestis (e não os
travestis, pois conforme preconiza a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e
Transexuais, é preciso respeitar as travestis e tratá-las no feminino) são
pessoas que nasceram e foram compulsoriamente registradas como homens, por
conta de uma mera verificação genital - como acontece com todo mundo, e não se
reconhecem como homens. Mas como uma conjunção entre o masculino e o feminino,
um terceiro gênero, um não gênero ou simplesmente travesti.
Veja que NÃO TEM NADA A
VER COM roupas, não são as roupas que definem a identidade de gênero de
ninguém. Mesmo que você coloque um terno e uma gravata em uma travesti, ela
continuará travesti, pois como já disse, a identidade de gênero é um constructo
biopsicossocial.
E vamos lembrar que nem
todo mundo nasce com pênis e vagina, há as pessoas intersexuais que nascem com
genitália ambígua. Genital é uma mera parte anatômica, que NADA tem a ver com a
identidade de gênero de ninguém, apesar de uma decisão política para
hierarquizar a sociedade ter classificado e dividido o mundo em dois, apenas
dois grupos: machos e fêmeas, com rígidas características para os dois lados, e
ai de quem tiver uma característica que seja que não compreenda a ditadura do
sistema sexo-gênero. Automaticamente a sociedade retira essa pessoa do grupo
das identidades inteligíveis e o coloca no grupo das identidades abjetas.
A sociedade cissexista
supervaloriza o genital como se ele tivesse poderes mágicos de decidir a
identidade de alguém. Mas eu não saí da barriga da minha mãe sabendo que homem
tem pênis e mulher tem vagina; aliás, eu nem sabia o que era um pênis e uma
vagina: isso foi ensinado, foi violentamente e o tempo todo imposto para mim,
para todos nós.
Portanto, parem de
tomar como natural ter pênis e ser homem, ter vagina e ser mulher e inclusive
esquecer as pessoas intersexuais - que não são et's. Meu gênero não está
instalado no meu genital, pois a concepção de gênero muda de sociedade para
sociedade, de tempos em tempos e se constrói também embasada em um discurso
político que define o que são homens e mulheres e hierarquiza a sociedade por
meio desse binário de gêneros.
A transgeneridade não
tem a ver com corpos, os mesmos corpos que as pessoas trans possuem, as pessoas
cisgêneras também possuem. A transgeneridade tem a
ver com um discurso político. Há pessoas trans que estão de boa com seus
genitais. É mentira que foi sendo propagada ao longo do tempo pela psiquiatria
que nos patologizou de que toda pessoa trans odeia de morte seu genital.
Inclusive há uma
imposição social que diz que mulher tem vagina, é uma imposição violenta, se eu
me reivindico como mulher e estou ouvindo o tempo todo que para ser mulher
precisa ter vagina, é evidente que muitas mulheres transexuais vão reivindicar
uma cirurgia: para inclusive serem menos discriminadas, mas as que descobrem
que não são menos mulheres por não se submeterem a cirurgia não deixam de ser transexuais
por conta disso.
Eu não nasci com sexo
nenhum, eu nasci nua, com determinada anatomia e o resto foi imposição: tanto
sexo quanto gênero são invenções e construções sociais. O sistema sexo-gênero
não existe por que um ser metafísico ou a natureza contou para o ser humano que
ele existia, mas foi o ser humano que achou por bem classificar e hierarquizar
a sociedade.
E essa hierarquização e
classificação acontece lá no ultrassom, quando o médico diz que a mãe está
grávida de um menino ou menina, essa é a primeira cirurgia que vamos todos
passar na vida, uma cirurgia linguística. A frase: é menino ou é menina funda
humanidade naquele sujeito que até então era apenas uma promessa. E a partir
daí a sociedade ao redor daquela pessoa gestante vai criar toda uma rede de
concepções e desejos para aquele ser que nem veio ao mundo ainda.
Ninguém é transexual e
travesti ao mesmo tempo. A legislação internacional tem cada vez mais
reconhecido que se dizer travesti ou transexual é algo que só a própria pessoa
pode fazer. Se a pessoas se sente travesti, se reivindica como travesti, ela é
travesti; o mesmo com transexuais. Simples assim. Agora, notaremos que há
mulheres transexuais e homens transexuais. As mulheres transexuais nasceram e
foram designadas como homens, mas se reivindicam como mulheres e os homens
transexuais nasceram e foram designados mulheres, mas se reivindicam homens.
Já as travestis em sua
suma maioria - sempre as travestis - nasceram e foram designadas homens mas não
se reivindicam nem homens e nem mulheres, mas apenas e tão somente travestis,
que seria uma fuga desse binário homem-mulher ou uma conjunção de ambos. Ainda
que se sintam respeitadas sendo tratadas no feminino como qualquer mulher.
E lembrar que a
identidade travesti só existe na América Latina, fortemente na América do Sul.
Nos EUA, por exemplo, todo mundo que não se identifica com o gênero que lhe foi
designado quando nasceu é tomado como pessoa transgênera.
E só um mero detalhe, a
palavra transexual é com um S só, apesar das pessoas muitas vezes escreverem
com dois esses. Que só pode ser por que estão mais acostumadas a lerem e
escreverem homossexual, essa sim com dois esses.
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