Hoje,
dia da consciência negra, uma pergunta me parece bastante pertinente. Porque precisamos
de consciência negra? É fato que muita gente acredita que não existe racismo, nos
acostumamos a dizer que vivemos numa democracia racial, que o país é multirracial,
e que por conta da miscigenação não há como sermos racistas... Mas será mesmo
que superamos os históricos desafios de cunho racistas que serviram de base
para estruturar social e culturalmente a nossa sociedade? A resposta é: Não. Não
superamos os alicerces escravistas que moldaram o nosso comportamento e às
nossas instituições. Somos uma sociedade estruturalmente racista e rechaçamos
qualquer tentativa de mudar essa realidade. E para ser mais precisa, alimentamos
um grande ranço por conta dos diversos mecanismos que legitimaram os direitos
do povo negro. Exemplo disso é a dificuldade que grande parte da sociedade tem
de aceitar as cotas raciais, um remédio que tenta superar a distorção entre a
educação formal precária proporcionada a maioria da população e a educação que
parte da classe média e alta pode pagar.
A
rejeição as cotas, alegando que o sistema é uma forma de segregar negras e
negros, é na verdade mais uma das muitas manifestações de racismo velado. E
olhe que já nas redes sociais comentários dizendo que “depois das cotas o povo
que frequenta a universidade ficou mais feio e mais mal vestido”.
Apesar
do estranhamento que pode causar, essas manifestações não se resumem ao racismo
velado, no Brasil, há sim o racismo claro, específico e incontestável. Vejam
que tem circulado nas redes sociais e nos noticiários um caso sério de racismo
onde uma mulher, que alega ser funcionaria pública, escreveu uma carta com
ofensas racistas dirigidas aos funcionários do Detran do Ceará que rebocaram
seu carro, que estava estacionado numa vaga pra taxi.
“Dia 11 de novembro, o
carro da mulher estava estacionado irregularmente em uma vaga de táxi na Rua
Marcos Macedo, no Bairro Aldeota; e, por isso, teve de ser rebocado até a sede
do Detran. Antes de o funcionário chegar ao pátio do órgão, a motorista já
estava no local, tentando impedir a entrada do reboque. ‘Ela se meteu na frente
e começou a dizer que a gente estava roubando o carro. Quando eu parei o
reboque, ela veio para cima de mim e eu expliquei que o veículo foi apreendido
porque estava estacionado irregularmente’, conta. ‘Dei continuidade ao meu
serviço, e ela ficou me esculhambando’, acrescenta. No dia seguinte, a mulher
chegou ao setor de fiscalização do órgão já com três cartas na mão, solicitando
o nome do motorista do reboque para dar um presente de Natal... O trecho
racista da mensagem tinha como alvo Mauro César, o motorista do reboque, com
expressões como: ‘hoje tu viveria no tronco, levando chicotada nos lombos’;
‘tem inveja de mim porque sou branca, né?’; e “tu nunca será como eu”. Tribuna do Ceará.
Na
carta ela se refere a Mauro Cesar com a seguinte descrição “o da cor da noite
sem estrelas”. As ofensas racistas são contundentes e têm início a partir do
trecho “Agora vou me referir ao da cor da noite sem estrelas: hoje tu vive como
gente, convivendo com gente, por causa da maldita princesa Isabel. Senão,
hoje tu viveria no tronco, como teus antepassados, levando chicotadas nos
lombos.” O teor da carta pode ser
conferido na imagem acima.
O
exemplo acima expõe apenas um caso em meio a tantos outros que sequer tomamos
conhecimento, vira estatística e/ou que não se tornam caso de polícia. Mas e o
que dizer quando o racismo é institucional? Quando a polícia é orientada a abordar
preferencialmente negros e são exatamente os jovens negros que compõe 60% da
população carcerária brasileira? Estamos falando que 60% da população
carcerária, envolvendo mulheres, homens maduros e velhos, nesse universo todo,
mais da metade dos presos são jovens negros. Também são eles as principais
vítimas de assassinatos. Em apenas 9 anos morreram 120 mil jovens negros, quase 3 vezes
o número de assassinatos de jovens brancos. Em 10 anos, os homicídios entre os
jovens brancos diminuíram 32,3% enquanto entre jovens negros aumentaram 32,4%.
Entre
as mulheres as manifestações de racismo atingem outro nível. Às mulheres negras
são sempre destinados os empregos mais subalternizados.
Em 2009, elas representavam 61,6% do total de mulheres ocupadas no setor de
trabalhos domésticos. As mulheres negras têm menores chances no mercado de trabalho, o
índice de desemprego entre homens brancos é de 5,3%, enquanto o de mulheres
negras é de 12,3%. Sem falar na diferença de remuneração entre as mulheres
negras e homens brancos. De acordo com o IPEA (2011), enquanto que a renda do
homem branco era em média de R$1491,00 a da mulher negra beirava a um terço
desse valor, ficava em R$ 544,40. Sem
falar que os homens, brancos e negros, preferem mulheres brancas para manter
relações duradouras. De acordo com Freitas (2014), o senso de 2010 apontou que
as mulheres negras são as que menos se casam e as que estão mais propensas ao
“celibato definitivo”. Em contrapartida as mulheres negras são vítimas
preferenciais de estupros.
Portanto,
embora negras e negros gozem de liberdade formal, “concessão” que a aboliu a
escravatura há mais de cem anos, boa parte delas e deles continuam sem poder
frequentar a casa grande, apesar da ascensão social de muitos negros e
negras. Lamentavelmente os corpos
das mulheres negras continuam sendo usados como mercadoria para entreter o
senhoril, seja através das exibições de shows de mulatas pra gringos verem ou
na televisão, onde a sexualização do corpo da mulher negra atinge o seu ponto
alto em “Sexo e Negas”.
Então,
o dia da consciência negra é necessário pra que a gente não feche os olhos para
a criminalização e o extermínio dos jovens negros, para nos manifestar contra
os espancamentos praticados pela polícia e contra os linchamentos em praça pública
praticado pela população e cujas vítimas preferenciais são negras e negros.
Linchamentos realizados nos mesmo moldes do pelourinho. O dia da consciência
negra é necessário para que a gente compreenda que negras e negros não são
descendentes de escravos e sim descendente de um povo escravizado pelo branco.
Bem como para que a gente entenda que ser negra não é sinônimo de ser mulata ou
que o corpo da mulata não é de uso público. Enfim, esse dia é também necessário
para que a gente não esqueça a impagável dívida que a sociedade tem para com o
povo negro.
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