Em maio de 1998
engravidamos daquele que seria no nosso primeiro filho. Eu e meu marido estávamos
casados há quase dois anos. A gravidez não foi planejada. Entretanto, estávamos
bastante felizes com a possibilidade de sermos pais.
Lamentavelmente,
três meses depois, após um susto, comecei a sentir contrações e ter
sangramento. Imediatamente procurei atendimento médico. A obstetra me
recomendou medicamentos que deveriam parar as contrações e cessar o
sangramento. Tomei a medicação por quatro dias sem êxito. Retonei a médica e
ela me recomendou que continuasse com a medicação por até uma semana, caso não houvesse
melhora retornasse. Como não obtive melhora retornei a ginecologista. Ela solicitou uma ultrassonografia para verificar
com estava o bebê. Então, constatou-se que o coração dele já não mais batia. Nessa
ocasião ela me informou que eu deveria parar com a medicação e aguardar que meu
organismo expulsasse o feto. Caso continuasse sangrando por mais de 5 dias eu
deveria fazer uma curetagem. Meu marido
estava me acompanhando e quando recebemos essa notícia ficamos arrasados. Eu chorei
bastante e ele me deu todo apoio.
Sangrei por
mais 8 dias. Até que fui levada ao Hospital Universitário Walter Cantídio. Lá fui
atendida por um médico que fez um exame de toque na presença de três residentes
homens. Depois deste, ainda vieram mais dois exames. E em ambos não sabia se
era examinada por um médico ou residente. Senti-me profundamente constrangida
com a situação. Naquele momento já ansiava sobremaneira fazer logo a curetagem
e ir embora o quanto antes. O que eu não imaginava era que meu tormento estava
apenas começando.
Vestiram-me apenas
com uma bata com abertura nas costas e me encaminharam pra sala. Fui orientada
por uma enfermeira a tomar uma medicação, enquanto ela me aplicava um sedativo.
Fui colocada numa maca com as pernas completamente abertas. Tive mãos pernas
amarradas.
Ainda não fazia
ideia do horror que iria viver até que colocaram os instrumentais na minha
vagina. Nessa ocasião comecei a sentir as dores mais cruéis que alguém pode
sentir. Eu tinha a sensação de que estavam arrancando meu útero com as vísceras
e órgão juntos. Hora eu sentia como se estivessem puxando tudo pra fora, outras
como se estivesse perfurando com uma faca o meu útero e outras vezes era como
se estivessem passando um ralador de coco pelo meu colo, útero e vagina. Eram dores
tão fortes que eu berrava. Não eram gritos, eram berros. Só depois do
procedimento entendi a orientação pra que não comesse nada por 12 horas e esvaziasse
o intestino antes do procedimento. Porque com certeza eu teria me defecado e a
todos na sala. Não lembro o que diziam durante o procedimento. E nem tinha como
lembrar. Mas acho que eles me mandavam calar a boca. Não posso precisar quanto
tempo durou essa tortura, mas me marcou até hoje.
Embora eu tenha
saído da sala aliviada, pois já não sentia tanta dor, o meu drama ainda não
havia terminado. Fui levada para enfermaria numa cadeira de rodas e ainda
grogue. Meu marido não pode acompanhar o procedimento, apesar de ser
profissional de saúde, ter um amigo na ala de obstetrícia e ter insistido em me
acompanhar. Ele não pode sequer ficar comigo na enfermaria. Quando ele chegou
pra me visitar pedi pra ele me levasse daquele lugar, pois as enfermeiras
estavam sendo bastante hostis comigo.
Quando cheguei ao hospital fui atendida pelo ginecologista
amigo do meu marido. Durante essa consulta, as enfermeiras me chamavam de mãezinha.
Apesar do “mãezinha” ter a intenção de ser carinhoso não era agradável ouvi-lo.
Estava em processo de aborto e queria aquele bebê, então o “carinho” me causava
dor. Eu não seria por muito tempo uma mãezinha. Principalmente depois daquele
sofrimento todo. Já no dia da curetagem, as enfermeiras sequer respondiam
minhas perguntas, tratava-me como lixo. Não hesitei, pedi que meu marido me
tirasse do hospital, mesmo que pra isso nos responsabilizássemos por qualquer
problema que decorresse da nossa decisão. Deveria ter ficado hospitalizada por
mais 24 horas.
Foi difícil,
mas consegui sair do hospital antes da liberação médica. Então, de sacanagem,
as enfermeiras não permitiram que meu marido me pegasse no quarto. Elas mesmas
me “prepararam” pra ir embora. Em vez de cadeiras de rodas fui levada andando
pelo hospital, embora ainda estivesse grogue. Sai levando minhas roupas e bolsa
nas mãos. Caminhava pelos corredores do hospital só de bata. A mesma com
abertura de cima a baixo na parte de trás, fechada apenas por um nó no pescoço. Além de percorrer o hospital quase todo mostrando as nádegas, eu ia deixando um
rastro de sangue pelo chão. Eu passei por tudo isso sem conseguir esboçar reação
alguma, pois estava drogada demais pra reagir. Quando cheguei ao piso inferior
e encontrei meu marido quase desabei. Contei-lhe tudo que passei e ele ficou
chocado.
Apesar da nossa
revolta achamos que seria um procedimento normal. Até que comentei com uma
amiga sobre o horror que eu vivi e ela me informou que esse procedimento deveria
ter sido realizado sob anestesia. Que deveria ter acordado somente depois da
curetagem e sem dor. Não acreditei que passei por tudo aquilo apenas porque fui
entregue a pessoas sádicas e doentes. Pessoas inescrupulosas que não sentem
remorsos em causar dor em pessoas que elas sequer sabem quem são e porque estão
ali. Eles acharam que eu havia provocado meu aborto e por conta disso
resolveram me punir.
Fui vítima da violência
obstétrica. Sofri por perder meu bebê e ainda fui punida por isso. Este tipo de
violência é bem mais comum do que se pode imaginar, principalmente contra
mulheres pobres. Apesar de não haver Estatuto do Nascituro me julgaram culpada
de provocar meu aborto. Caso este estivesse em vigor nessa situação, além de
passar por tudo isso talvez tivesse que responder um processo por provocar um
aborto que eu tentei evitar.
O Estatuto do
Nascituro, caso seja aprovado, poderá legitimar a violência que sofri e
provocar mais sofrimento do que esse tipo de situação por si só já provoca. Tendo
por exemplo que enfrentar um processo e durante ele ter provar que o
abortamento foi espontâneo.
Somente pessoas
sem o mínimo de discernimento é capaz de achar que, caso o abortamento seja
descriminalizado, nós mulheres o usaremos como método contraceptivo. O aborto é
extremamente traumático em qualquer circunstância. A mulher só opta por ele em
casos extremos. Mas ainda mais traumático
seria levar adiante uma gravidez indesejada.
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