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Machismo nosso de cada dia. |
Por Hanna Thuin
O estupro é um dos filhos bastardos do machismo.
Bastardo porque deste herda os traços, mas não o reconhecimento. O machismo é a
raiz podre que germina em solo Argiloso; é o início do espinho que emerge na
Terra Roxa; é o calvário que se instala no Calcário. O machismo está em toda
parte. Enraizado. Reproduzindo livremente seus podres frutos e alimentando, com
eles, tradições e poderes apodrecidos. O machismo veste muitas cores, muitas
modas, muitos nomes. O machismo é a nossa crítica à saia curta e ao decote; o
machismo é a nossa repulsa à puta e concomitante glorificação do conceito
menina-santa-songa-monga. O machismo é a crucificação do aborto travestido de
religião; é , também, a proibição da ordenação da mulher. O machismo é árvore
de muitos galhos.
Machismo nosso de cada dia.
O machismo não me deixa jogar bola, porque futebol
é coisa de homem; não me deixa conduzir um carro, porque mulher no volante é
barbeira; não me deixa ser a capa de um jornal de finanças, sorridente e bem
sucedida, porque esse papel milenarmente cabe, tão somente, ao homem (branco).
O machismo não deixa que eu me expresse, que eu marche pelos meus direitos, que
eu exponha meu corpo como eu quiser.
O machismo não deixa que eu escolha minha foda, a
minha companheira no lugar de companheiro – se quero ou não ter filhos. O
machismo não me deixa ser mãe solteira. O machismo não deixa que ela ganhe mais
que ele ou que ele cuide da casa e auxilie-a nas responsabilidades domésticas.
O machismo não deixa que a mulher seja o que é: forte. Ele tenta o tempo todo
submetê-la à obediência, à submissão, à resignação.
O machismo, contudo, sabe ser generoso – abre
“exceções”. O machismo permite objetificar o corpo da mulher para que seja essa
a imagem impulsionadora das vendas de carros e de cervejas. Permite ao marido
ser convocado em propagandas toscas de rádio a bancar o consumismo clichê
feminino – resume a mulher ao crédito. Permite e reforça a exigência das curvas
sempre exatas, da roupa comportada, das unhas feitas, do cabelo liso e
escovado. Permite que o cavalheirismo seja visto como gentileza dele e o sexo
como obrigação servil dela. Permite que ele faça da infidelidade um estilo de
vida e do pênis um instrumento de reconhecimento e poder. O machismo permite
que a apologia ao estupro em uma recepção de vestibular seja vista como um caso
isolado de “dois babacas” dessintonizados com o curso e não como um problema
institucional que ultrapassa os muros da Universidade- o espaço acadêmico
hodiernamente (e infelizmente) ainda reproduz, sem a necessária reflexão, os
ecos e ensinamentos que vêm de antes, que vieram e vêm lá de fora. O machismo
permite que a hipocrisia se diga moral e, em um cuspe, agrida as mulheres que
marcham por um necessário despertar; permite, inclusive, normatizar o estupro,
assegurando, àquele líquido branco, a hospedagem no útero, sem questionar a
existência de um prévio aceite: se ela disse sim ou se disse não, para o
machismo, tanto faz.
Engana-se quem pensa ser o machismo opressor apenas
do feminino. Senhor feudal, pai, filho e herdeiro das tradições e do
conservadorismo, o machismo é poder corrupto e mecanismo de exclusão que se
pretende perpétuo. É em nome dele e por ele que se prega e legitima o homem
branco como “the choosed one” para dominar a tudo e a todos.
É em nome
dele e por ele que se máscara o fundamentalismo de democracia e a intolerância
de religião. É ele quem dilata as nossas glotes e permite um indigesto
Feliciano permanecer na presidência da Comissão de Direitos Humanos. É ele que
impede o Ministério da Saúde de veicular uma campanha em que afirma que
prostituta também é gente e é gente feliz. É ele quem veta um kit que prega o
respeito e a compreensão da sexualidade que escapa aos padrões normativos, mas
permite e incentiva, com recursos públicos, a distribuição de uma cartilha que
não contente em veicular a homofobia, relativiza o estupro, personificando o
gozo do estuprador em uma vida a ser protegida. É ele que condena as rupturas,
que agride àquela que se insurge contra o sistema, que demoniza quem ataca seus
símbolos.
É em nome dele e não de Deus que se pratica o
racismo, a homofobia, o feminicídio, a opressão de classes. É ele quem cerceia
com normas, padrões e pecados intransigentes o próprio existir dos sujeitos.
Não sejamos ingênuos nem tenhamos piedade com quem
nunca nos poupou. Não se combate o machismo com afagos na cabeça e conversas
baixas. Não se combate o machismo com a manutenção dos símbolos nem com o
silêncio de quem a tudo assiste inerte e, assim, consente. Não se combate o
machismo marchando em fila indiana e batendo continência para a hipocrisia. É
preciso peito. Esteja ele nu ou pintado – a coragem de impô-lo traduz-se na
ausência de panos, sem temer o pudor do moralismo alheio. Não
existe paz sob a regência do medo. Não existe democracia quando a metade do
povo, dita ironicamente de minoria – cracia-, é feita de demo indialogável e
invisibilizado pelas bandeiras monocromáticas do branco classe média hétero
“religioso”. É muito fácil criar pecados e interpretar de maneira viciada o calçado
do Outro, difícil é dispor-se à alteridade de enxergá-lo para além dos estigmas
e da herança dos frutos podres que desde cedo nos são dados como alimento e
como instrução.
Que o senso comum, a homofobia, o racismo, o
feminicídio, a opressão de classes, a xenofobia, que todos esses rostos do
machismo se tornem, a cada dia mais, os verdadeiros outsiders. Sejam eles os
deslocados, os excluídos, os eliminados. Que a gente desperte os sentidos e a
vontade para entender e enfrentar o verdadeiro inimigo e seu exército de
formas, linguagens, poderes, pessoas. Que a nossa revolução comece em nós mas
em nós não termine e não se contenha; que se expanda, que invada a rua, o
comércio; que barulhe os ouvidos até que seja verdadeiramente escutada,
sentida, pensada.
Há muito para fazer: há um tanto de dureza e
concreto para demolir. Os caminhos, contudo, estão aí, abertos. Há um incômodo
com potência para ser mudança. Há gente muito boa na rua pronta para o novo.
Que a gente não perca o embalo e nem a coragem e, se por ventura, faltar o
norte, que a gente tenha o gosto do nojo na memória: aquele líquido branco
banhado de sangue e de pranto – gozo egoísta, monstruoso.