Ontem foi
publicado no site da Folha de São Paulo, veja a matéria na íntegra aqui, uma
reportagem sobre um show de mulatas exibido durante um fórum patrocinado pelo
Ipea. Segundo A Folha, Os servidores Natália de Oliveira Fontoura,
Luana Simões Pinheiro, Antonio Teixeira Lima Júnior, Leila Posenato Garcia e
Fernanda Lira Góes redigiram uma carta e a divulgaram entre os colegas
repudiando as iniciativas e argumentando que as imagens contradizem o esforço
do governo federal para combater o turismo sexual e a violência contra as
mulheres. O show das mulatas no congresso evoca a "suposta sensualidade e
disponibilidade dos corpos femininos negros ("¦) a serviço dos homens
brancos".
“Imagens
de mulatas de uma escola de samba interagindo com professores estrangeiros em
um congresso organizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
provocaram incômodo entre os funcionários do órgão, vinculado à União. Cinco
servidores divulgaram uma carta aberta na última terça-feira (30) em protesto
contra a iniciativa de contratar a apresentação das mulatas, considerada por
eles "racista" e "sexista". O fato ocorreu no 6º Fórum Acadêmico dos
Brics, organizado pelo Ipea e a Secretaria de Assuntos Estratégicos no Rio, em
março deste ano.” Folha de São de Paulo.
Tentando
relativizar o ocorrido Marcelo Neri (que aparece na imagem), hoje ministro da Secretária de Assuntos Estratégicos (SAE), que presidia o Ipea na época do congresso afirmou que as passistas
representam uma manifestação cultural típica do Brasil. “Aquilo era
absolutamente normal dentro do Rio de Janeiro. Elas estavam exercendo seu
trabalho”. Quanto à alegação de racismo e sexismo, ele afirma que “está no
olhar de quem vê. Estamos no Brasil, não estamos na Rússia”.
Sem dúvidas,
o racismo “está no olhar de quem vê” e nesse caso, o sexismo também. Não vejo
como ser possível uma apresentação de mulatas para um grupo de pessoas com deficiência
visual ser usado para reforçar estereótipos que diz respeito ao fenótipos de
outro grupo.
Os
discursos afiados de defesa do uso da mulher, principalmente a negra, como
objeto fetichizado para deleite majoritariamente do homem branco é reforçado
pela máxima que defende “tudo em nome da arte”. A violência protagonizada pela
indústria pornô (estupros, drogadição involuntária, espancamento...) é exemplo disso.
Mas já advirto que não acho legítimo o argumento de que vale tudo em nome da
arte. Principalmente quando se trata da exploração e ou violência contra grupos
historicamente explorados e marginalizados.
No
entanto minha opinião está longe de ser unânime, pelo contrário, normalmente é
vista como uma visão distorcida da realidade ou como uma visão conservadora que
tenta cercear a liberdade feminina. Mas, a crítica a minha indignação diante da
ocorrência desse fato foi além desse argumento raso. Veja o que disse uma pessoa bastante influente
e formadora de opinião sobre a minha intervenção no sentido de reprovar o uso
da mulher negra como objeto de deleite do homem branco.
São:
“Apenas mulheres negras, mulheres
trabalhadoras que ganham pouco e que dançam um ritmo que, como elas, tem
origens africanas. Muitas de suas antepassadas dançavam de seios nus. São como
mulheres árabes que praticam a dança dos véus, do ventre. Não se pode julgar
uma cultura com os olhos de outra cultura - principalmente com os olhos de uma
cultura baseada na tradição cristã de repressão ao corpo e à sexualidade.” F. M.
Ao ser indagado sobre a existência ou não da
mercantilização do corpo feminino, mesmo no uso de uma expressão cultural, com
a finalidade de fetichização e para satisfazer a libido masculina ele contra
argumentou que:
“Claro que existe, Ana Eufrázio, da mesma forma que
existe a dança do samba, a expressão corporal do ritmo. A condenação genérica a
esta expressão cultural e artística é uma forma de preconceito contra o gênero
musical e, principalmente, contra as mulheres, trabalhadoras, dançarinas,
artistas. O trabalho delas é tão digno quanto o meu e o seu, e merece respeito
(recomendo que vc veja o filme que citei no meu comentário). Fetiches estão por
aí, há quem tenha fixação por enfermeiras, freiras ou por homens fardados, cada
qual com seu cada qual. Fico assustado ao ver como ainda muita gente procura
negar o que somos, nossa cor, nossa música, nossa dança. Mês passado, fui ao
Municipal ver uma montagem da ópera Salomé. Em determinado momento, a soprano
fez uma dança pra lá de sensual, retirou os véus que cobriam seu corpo - e
ficou nua em cena (peladona mesmo). Ninguém tem dúvidas de que era uma
expressão artística, ninguém fala em mercantilização de corpo feminino, de
fetiche. Talvez porque ópera é tida como coisa de branco, de europeu. abraços.”
F. M.
Só posso supor que não me fiz entender. Enquanto
expressão cultural, o samba e todas as outras manifestações culturais
pertencentes ao povo negro são belíssimas e extremamente ricas. O problema é
uso comercial dessas expressões completamente descontextualizada e com a
finalidade única de alimentar a libido masculina, como foi o caso.
Historicamente a "sensualidade" da mulher
negra, nas suas expressões culturais, foi usada como mercadoria, ora para
entreter o senhor feudal e suas visitas por ser “exótica”, ora pra satisfazer
suas necessidades sexuais. Essa ainda é a realidade da mulher negra, uma
realidade estereotipada, representada pela "mulata”, a mulher “sexualmente
liberada”, o fetiche de homens enquanto objeto sexual. E que inclusive se
tornou objeto “tipo exportação”, genuinamente brasileiro, justamente para
usufruto do homem branco, conservador, cristão e racista.
Elza Soares |
“O pensamento que nos reduz em brinquedos sexuais. Dizer que uma mulher
negra é uma “mulata tipo exportação” é esquecer uma tradição escravocrata
secular, que transforma a mulher negra em “peça” que alcançará boa cotação no
mercado onde a carne mais barata é a nossa. O nome desse mercado é exotificação. Em alguns casos, hiperssexualização. Infelizmente
também estamos falando sobre o modo racista com que as mulatas de escola de
samba, mulheres que respeito e admiro, são mostradas e consumidas. Mulheres que
levam o samba no pé, no sorriso, na raça. Que, ao invés de serem uma referência
de beleza, são vendidas como frutas exóticas na temporada do carnaval.” Ariane Machado em Juntos.
Além disso, outro problema reside exatamente na
expressão que ele colocou "Apenas mulheres negras, mulheres trabalhadoras
que ganham pouco". Perfeitamente, a realidade da mulher negra é exatamente a
da segregação. Às mulheres negras são
sempre destinados os empregos mais subalternizados. Em
2009, elas representavam 61,6% do total de mulheres ocupadas no setor de
trabalhos domésticos. As mulheres negras têm menores chances no mercado detrabalho, o índice de desemprego entre homens brancos é de 5,3%, enquanto o de
mulheres negras é de 12,3%. Sem falar na diferença de remuneração entre as
mulheres negras e brancos. De acordo com o IPEA (2011), enquanto
que a renda do homem branco era em média de R$1491,00 a da mulher negra beirava
a um terço desse valor, ficava em R$ 544,40.
E essas distorções também se revelam na
ficção. São poucos os atores e atrizes negras atuando na televisão. Além disso,
aos negros é reservado sempre os papeis de menor destaque e interpretando
papeis estereotipados reproduzindo o caráter racista da nossa sociedade, como
os papeis de motorista, empregada domésticas ou coisas do tipo. Quanto à
comparação feita por F. M. será que o valor recebido pela atriz branca (que
interpretou Salomé, no Teatro Municipal) por sua nudez foi o mesmo recebido
pela mulata para rebolar e se expor para um público que a tinha ao alcance da
mão?
Então, para concluir suas argumentações F. M. dispara – “Ana,
compreendo sua preocupação, é justa. Mas, entenda, aquelas mulheres, aquelas
artistas, aquelas bailarinas, estão fazendo o que gostam. Elas gostam de
sambar, de exibir sua arte e, mesmo, seus corpos. Têm o direito de fazer o que
querem, o que gostam, o que sabem fazer. não é correto vê-las na condição de
subordinadas a um poder branco e masculino. O problema está mais na remuneração
do que na escolha. No mais, sambistas - cantores, compositores - também ganham
mal. É só ver como a maioria dos nossos grandes autores morreu pobre.”
Acho que o meu interlocutor novamente não entendeu minha
contra argumentação quanto à estereotipação da mulher negra (aqui chamada de
mulata). Coloquei que chegamos num ponto interessante da conversa, e sobre o
qual concordamos; "autonomia". – Também acho importante que a mulher
possa escolher sobre todos os direcionamentos que pode dar à sua vida,
inclusive de optar pela nudez pública e para o público de sua preferência. No
entanto, entendo que a autonomia, dentro de um sistema que direciona as
"preferências" e constrói estereótipos, acaba diluída pelas
imposições de mercado.
Como
coloquei lá em cima, a televisão quase sempre retrata a mulher negra em posição
de submissão. Embora, reflita exatamente o que ocorre fora da ficção, reforça
estereótipos. Bem como, é reforçar estereótipos a propagação da imagem da
mulher negra associada quase sempre ao carnaval, ao samba e à hiperssexualização.
Tanto a ausência de referencial de mulher negra de sucesso ocupando cargos de
destaque quanto a glamorização da profissão de passista e de dançarina, acaba levando
às meninas da comunidade negra ao sonho de atingir o status de mulata “padrão globeleza”.
Exemplo mais “concreto” e “democrático” de sucesso entre as mulheres negras que
ascenderam através da arte.
Sem falar que é vendido o sonho de que a “mulata
tipo exportação” viaja o mundo inteiro apresentando sua arte. Mas, o que não
fica explícito é que, apesar de “democrático”, este é um mercado restrito, onde
a mulher é descartável (principalmente por conta da idade e condição física) que
impõe bastantes restrições, que implica – de certa forma – riscos, remunera mal
a maioria delas e ainda é estigmatizado. Portanto, levando em conta todas as
questões colocadas acima, se tornar mulata, para boa parte das meninas, está longe
de ser uma escolha consciente, este é um espaço historicamente destinado a
mulher negra.
Benedita da Silva |
Entretanto, quero deixar claro que a realidade da mulher
negra não está restrita as imposições e posições citadas acima. Apesar das dificuldades
de ascensão, a mulher negra ocupa todos os espaços e posições na nossa
sociedade. No entanto, essa ascensão não pode ser usada para negar a existência
do racismo e às limitações socialmente impostas a comunidade negra.
Matilde Ribeiro |
“O ingresso no mercado de trabalho
do negro ainda criança e a submissão a salários baixíssimos reforçam o estigma
da inferioridade em que muitos negros vivem. Contudo, não podemos deixar de
considerar que esse horizonte não é absoluto e mesmo com toda a barbárie do
racismo há uma parcela de mulheres negras que conseguiram vencer as
adversidades e chegar à universidade, utilizando-a como ponte para o sucesso
profissional [...]As mulheres negras que conquistam melhores cargos no mercado
de trabalho despendem uma força muito maior que outros setores da sociedade,
sendo que algumas provavelmente pagam um preço alto pela conquista, muitas
vezes, abdicando do lazer, da realização da maternidade, do namoro ou
casamento. Pois, além da necessidade de comprovar a competência profissional,
têm de lidar com o preconceito e a discriminação racial que lhes exigem maiores
esforços para a conquista do ideal pretendido. A questão de gênero é, em si, um
complicador, mas, quando somada à da raça, significa as maiores dificuldades
para os seus agentes. Maria N. da Silva em Espaço Acadêmico.
* Matilde Ribeiro, Co-fundadora da Soweto, ativista
do movimento de Mulheres Negras. Foi a 1º Ministra da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial
*Benedita da Silva, a
primeira senadora negra do Brasil. Governadora do Rio em 2002, Foi Ministra da
Assistência e Promoção Social.
Elza Soares, interprete da música "A carne", cujo refrão argumenta:
"A carne mais barata do mercado é carne negra"
1 comentário:
Ana, mais uma vez dev parabenizá-la pelo post. Sinceramente anseio pelo dia em que a mulher será vista como pessoa e não mais como objeto sexual e de desejo, no caso da mulher negra é que ainda pior, pois somos "vendidas" como exoticas. Amei a parte, Ana em que você fala sobre "glamourizar" a profissão de passistas, realmente a mídia, só divulga a parte linda da profissão, e algumas meninas sonham tanto com isso e acabam por nem perceber o quanto são usadas e depois descartadas ou substituídas. Lamentável que o Brasil não consiga mais desvincular a sua imagem das mulheres, do samba e do futebol, como se a mulher fosse algo que pudesse ser comercializado como um produto e estivesse sempre ao alcance de quem possa pagar.
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