Antes
de me envolver no movimento feminista eu tinha a tendência de querer tomar para
mim o protagonismo de todas as lutas. Eu achava que podia escrever e falar
sobre racismo. Eu achava que poderia lutar lado a lado com a mulher negra
contra o racismo e o machismo. Eu achava que eu poderia falar sobre o quanto o
racismo tinha impacto na vida da mulher negra. Mas, como mulher não negra, eu
não tinha a menor ideia de que não sabia muita coisa sobre racismo e, por
consequência, não sabia nada sobre a opressão que a mulher negra sofre.
E
somente convivendo com mulheres negras e as ouvindo eu acabei compreendendo que
não, eu não tenho a exata dimensão do que é ser uma mulher negra. Não. Eu não
sei o que é viver como uma mulher negra e nunca vou saber. Eu nunca vou
compreender exatamente o que é sofrer racismo ou como é crescer e ter de
conviver com a sensação de não ter a aparência socialmente aceita...
Eu
fico imensamente feliz por ter encontrado mulheres que me fizeram compreender
que por mais revoltante, sem sentido, escroto eu achasse o racismo eu não
saberia muito sobre racismo. Eu não sei nada sobre racismo simplesmente porque eu
nunca sofri racismo.
Eu
posso me indignar com atitudes racistas, com declarações racistas eu posso
colaborar com a luta contra o racismo, mas jamais achar que eu posso ser
protagonista nesse movimento porque eu, enquanto mulher não negra, faço parte
do problema. O racismo, quer eu queira, quer eu não queira, me beneficia. E
inevitavelmente, em algum momento, eu vou usar do privilégio de ter minha
aparência socialmente aceita.
Porque
perceber essas questões é tão importante? Para que eu não tome o lugar de fala da
pessoa negra, para que eu não tente roubar o seu protagonismo. Como sempre coloca Lia Keller (feminista
negra).
“Há lugares em que o negro necessita ter voz
porque a sociedade estruturalmente o silencia. É muito bom ter um espaço
alertando para a luta do negro, mas é bem mais coerente se esse espaço fosse
construído através da voz do próprio negro. As falas feitas por nós mesmos,
entende? Nós lutamos muito por lugar na sociedade que nos oprime, por isso ter
voz é tão importante.
Lia Keller.
Eu
acreditava que tinha voz dentro do movimento negro. Morei na favela um bom
tempo e minha avó era negra. Por isso eu achava que era negra e que doía em mim
o racismo. Não dói. Não dói porque eu nunca deixei de fazer coisa alguma por
conta do tom da minha pele, por conta do meu cabelo. Nunca precisei arriscar
minha saúde, como minha avó fazia, com produtos para alisar meu cabelo para
adequá-lo as exigências culturais ou da mídia. Nunca precisei me esforçar para
ser socialmente aceita ou para não parecer suspeita. Eu concluí o ensino médio,
a faculdade e a pós-graduação. Casei e sempre cumpri com todos os meus
objetivos.
Então,
conversando com Verônica sobre isso ela me colocou o seguinte:
“Nos EUA a politica de identidade étnica diverge um
pouco da daqui do Brasil, lá levam mais em conta ascendência, genética do que
cor de pele propriamente dita. Aqui no Brasil, ascendência conta nos negros de
pele clara, tidos pardos, mas mesmo assim ainda a leitura é feita por cor de
pele, o colorismo, quanto mais a pessoa se aproxima do padrão eurocentrado,
mais privilégios ela terá comparado ao negro de pele escura. Comparada ao
branco essa pessoa será tolerada, porém não aceita porque é mais escurinha,
mais "moreninha". Então aqui no Brasil a leitura de identidade étnica
é feita especialmente por cor de pele. Uma pessoa que tenha passibilidade
branca será lida como branca e por isso não poderá se identificar com a etnia
negra, porque se fosse ver no de sentir eu também poderia me sentir branca e
ninguém poderia me questionar.” Verônca Martz (Feminista
negra interseccional).
Portanto,
reconheço todos os meus privilégios. E por isso, sei que não tenho fala dentro
do movimento negro. Mas, essa compreensão só foi possível depois de ouvir as
companheiras negras e os companheiros negros. Particularmente, um relato me fez perceber o
quanto o racismo é perverso e o quanto eu não sabia sobre ele.
Numa
certa ocasião, enquanto eu “dava aulas” sobre como o racismo influência negativamente
as vidas de negras e negros uma pessoa me revelou que em certa ocasião não quis
me acompanhar numa visita à loja de um shopping de alto padrão da minha cidade
porque ela se sentia vigiada e, me confessou chorando, que noutra ocasião,
quando aceitou o meu convite, ficava pegando na minha mão para que as pessoas
não achassem que ela iria roubar alguma coisa. Eu chorei muito por isso. Nunca
havia imaginado que isso acontecia com essa pessoa.
Depois
de ouvir esse relato eu finalmente compreendi que não sabia nada de racismo e
foi a partir dele que eu percebi que as diferenças no nosso tom de pele fazia
toda a diferença. E que, somente por isso, eu era socialmente aceita e essa
pessoa não. Foi a partir daí que eu percebi que não podia me auto declarar
negra só porque mina avó era negra. Porque ser negra ou negro não diz respeito
só a visão que temos sobre nós mesmas, nos diz muito mais sobre como as pessoas
nos veem e as experiências no nosso cotidiano.
“É
exatamente aí que a gente percebe o quanto é importante a vivência para agregar
ao movimento. É muito importante a identidade, claro. É importante perceber a
qual cultura se é pertencente, onde é sua origem. Mas para ter propriedade no
movimento só mesmo quem sente na pele esse tipo de situação. É triste demais
passar por isso. Eu mesma não fui atendida em lojas, porque preto é logo associado
a pobre. Por ser mulher sou um pouco menos visada em relação em relação á
roubo, mas o peso principalmente aparece em relação á cabelo, ao corpo. É muito
dolorido saber histórias como a dessa pessoa próxima a você, e não só por
acontecer com ela, mas porque essa história se repete muitas e muitas vezes.
Mulher negra é feia, é pobre. Homem negro é ladrão, marginal. E isso não é
esfregado nas nossas caras uma vez ou outra, é praticamente todas as vezes que
pisamos para fora de casa. Muito, muito importante mesmo que as pessoas tenham
consciência de que não sente isso tudo na pele, que não passa o que passamos no
cotidiano, e finalmente reconhece o seu lugar.” Lia Keller.
Sem comentários:
Enviar um comentário