Aconteceu quando tinha 15
anos. Com onze anos fui morar na França e voltei
quatro anos depois para a Colômbia onde tinha passado minha infância: meu corpo
era outro sem que eu mesma percebesse, e isso foi notado por pessoa muito
próxima.
Meu estupro aconteceu no seio de minha própria família, por isso assim que tive a oportunidade de voltar para o Brasil decidi que não queria voltar lá tão cedo, apesar de amar o restante de minha família e a cultura desse, que também, é meu país.
Meu estupro aconteceu no seio de minha própria família, por isso assim que tive a oportunidade de voltar para o Brasil decidi que não queria voltar lá tão cedo, apesar de amar o restante de minha família e a cultura desse, que também, é meu país.
O processo de sobrevivência
a um estupro é algo lento e demorado.
Se hoje falo abertamente disso, o faço com tranquilidade: não me envergonho, pois sei que eu não tive culpa de nada.
Se hoje falo abertamente disso, o faço com tranquilidade: não me envergonho, pois sei que eu não tive culpa de nada.
O ato foi violento, foi
assim que perdi minha virgindade e até hoje não tolero que alguém segure meus
pulsos com força. No primeiro momento o sentimento do horror, do nojo do
próprio corpo, do ódio, o enjoo, a sujeira era muito grande. Fiquei um bom
tempo me ocultando com roupas largas e escuras: não queria aparecer ou chamar a
atenção novamente.
Em seguida o sentimento de
vingança tomou conta de mim, e fiz terror e pânico de meus relacionamentos
adolescentes. Sentia-me justiçada em fazer homens sofrer recusando-os,
atraindo-os e humilhando-os. Fui muito cruel com pessoas que não mereciam e que
não faziam ideia de porque agia assim, ou pelo que tinha passado.
Como muitas mulheres não
falei nada para minha família, pois tinha medo da reação, da tristeza que isso
poderia gerar, e também não queria que outras pessoas se sentissem responsáveis
por isso. Queria poupar as pessoas que amava e que me criaram com tanto carinho
lá onde estava longe de meus pais.
Quando tive a oportunidade
de voltar ao Brasil foi um alívio, uma fuga que tirou de mim o peso de conviver
com meus agressores. Foi aqui que conheci finalmente o amor, a confiança, a
intimidade serena e a calma. Todos os meus namorados souberam o que tinha
acontecido comigo: sempre fui franca com relação a isso. Todos me respeitaram e
apoiaram e por isso lhes sou muito grata, pois foram esses relacionamentos que
me colocaram de encontro com meu corpo novamente. Falar com eles foi o primeiro
passo de meu processo de cura.
Crescendo e deixando a
adolescência de lado consegui me abrir com meus amigos, em especial minhas
amigas, e fui me dando conta de como era comum esse tipo de violência. A
verdade e que todos nós já conhecemos uma mulher que um dia já foi violentada.
Conseguir me abrir com
minhas amigas me deu coragem de me informar melhor a respeito e superar o
trauma da lembrança: por dez anos qualquer cena de filme ou TV relacionada me
fazia chorar. Os pesadelos eram recorrentes. E não era apenas uma lembrança
visual, mais física, que baixava minha pressão, me enjoava e fazia até vomitar.
Compreender que não era a
única, e o sentimento de não estar sozinha, mesmo que todas estivéssemos
caladas, me deu força para superar esses sentimentos de repulsa a minha própria
história.
Pesquisando os diferentes
tipos de violência e reeducando minha memória me dei conta que meu estupro não
tinha sido a primeira violência sexual da qual tinha sido vítima. Dei-me conta
que em minhas memórias confusas da pequena infância eu já tinha sido molestada
(talvez não por acaso) por uma das pessoas que voltaria a abusar de mim depois.
Mas, como era criança não tinha percebido ou entendido o que tinha acontecido.
Só percebi adulta: lembrei daquilo que aparente tinha ocultado em minha mente
para me proteger.
Recentemente, já com trinta
anos tomei coragem e pude me abrir com minha mãe. Minha única e essencial
família. Era um dos últimos fardos que tinha para me libertar de tanta dor. O
silêncio de quinze anos tinha feito horrores com nosso relacionamento. Apenas o
distanciamento e o tempo me permitiu notar como a culpei e a fiz sofrer por
algo que ela tampouco sabia. Foi uma conversa dolorosa, necessária, com alguns
tropeços, mas finalmente reconciliadora. Eu sei o quanto nos amamos e,
certamente, nos amaremos cada vez mais.
No começo de março dei em
minha escola uma aula sobre o tema do dia internacional da mulher. Como
militante feminista, considero meu dever alertar as futuras gerações para
combater e denunciar essas violências. Apresentei dados, e fiz algumas
perguntas em sala: perguntei quantas das meninas já tinham se sentido
incomodadas com cantadas e olhares na rua e todas levantaram a mão. Meus alunos
têm entre 10 e 13 anos.
Conversando sobre as
estatísticas muitas crianças se abriram e contaram a história de suas famílias.
Alguns eram casos de terror. Uma delas tinha procurado ajuda quando o pai
espancava a mãe; outra tinha uma prima que foi estuprada e morta; outra tinha
sido vítima de tentativa de sequestro (e o sequestro feminino geralmente inclui
o estupro no pacote)... Outras alunas choravam em silêncio na sala, dando a
entender as violências que assistiram ou passaram, mas não tinham coragem de
contar.
Hoje está tendo este ato
virtual em resposta à pesquisa que mostrou que a grande parte da população brasileira
culpa a mulher pelo estupro.
Foto Daiara Figueroa |
Decidi participar e me
mostrar como indígena que sou, pois no Brasil as mulheres indígenas são um dos
grupos mais propensos a violência sexual. São Gabriel da cachoeira, cidade
perto da aldeia de minha tribo é conhecida como uma das capitais da exploração
sexual infantil (conhecida popularmente como prostituição infantil) e tráfico
de mulheres, e a grande maioria destas mulheres são indígenas.
A figura da mulher indígena,
assim como a da mulher negra é violentamente sexualizada em nosso país. Isto é
algo que não podemos aceitar e que também devemos combater.
Tudo isto fez parte de meu
processo de cura. A violência sexual existe, e o estupro é algo comum.
aproximadamente 80% dos estupros acontecem dentro do circulo familiar: são parentes e amigos próximos. As estatísticas do abuso infantil são semelhantes.
aproximadamente 80% dos estupros acontecem dentro do circulo familiar: são parentes e amigos próximos. As estatísticas do abuso infantil são semelhantes.
Mesmo que inaceitável,
muitas pessoas convivem com a memória dessas violências. É uma convivência
dolorosa, mas toda dor pode também se transformar em cura.
Curamos a nós mesmos quando
entendemos que não estamos sós. E que somos mais fortes e não precisamos gerar
mais violência, pois violência se cura com amor e paciência.
Daiara Figueroa |
Curamos a nós mesmos quando apoiamos os outros, os escutamos, ou simplesmente acompanhamos: a cura é algo de mão dupla.
Curamos a nos mesmos quando alertamos sobre a violência, e educamos para que ela cesse.
Este é meu processo de cura.
Estou em paz com isso.
Podem ficar tranquilos.
I'm freaking fabulous!
I'm freaking fabulous!
1 comentário:
Eh, vi, Ana. Uma dentre várias que li,porém,logo com uma indígena...
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