domingo, 11 de maio de 2014

Sobre o meu dia das mães



Hoje, dia das mães, pensei em diversas maneiras de homenageá-las e não encontrava a forma satisfatória, pelo menos pra mim. Acho que a dificuldade decorre do fato de, por opção, não ser mãe ou até mesmo da minha experiência não tão como filha. Não tenho boas histórias pra contar da minha avó, quem eu reconheci como mãe, e tampouco consigo falar com carinho de histórias sobre a minha mãe biológica. Na verdade eu nem tenho história com ela ou sei histórias sobre ela. Mas aí lembrei de um texto que escrevi sobre ela para o meu livro que gostaria de compartilhar com vocês. É uma reflexão sobre o dia em que passei a ver minha mãe biológica de outra forma. 
Meu marido costuma dizer que tenho memória de elefante, principalmente no tocante a chafurdar as memórias empoeiradas e repletas de mofo, vou longe nesse processo, desço até encontrar o fim do túnel, não deixo pedra sobre pedra, vasculho cada cantinho e encontro coisas perdidas em meio a montanhas de quinquilharias. Por vezes me perco olhando cada item que encontro, identifico o cheiro, a textura e o sabor. De volta à superfície, encontro tudo diferente, às vezes o cenário está completamente desarrumado, com tudo fora do lugar. Por outras, eu encontro tudo na mais perfeita ordem. De certo e indubitavelmente, nada tem a mesma forma, textura, cor e sabor quando revisitado. Todos os fragmentos que encontro transformaram-se. Às vezes essa metamorfose leva décadas, outras ocorrem em frações de segundos. Como no dia em que vi minha mãe entrar pela porta da frente da minha casa. A vi chegar como a mulher que não se importava comigo, que havia me abandonado e que não se arrependia por ter feito isso e saiu como uma mãe que desejava muito reconstruir os vínculos maternais. 

Entrou, sentou à mesa da sala de jantar, pediu um copo com água, descansou do sol quente e tirou de uma sacola uma boneca. Ela me entregou dizendo que havia ganhado num sorteio. Olhei pra ela e vi uma mulher de mais de cinquenta anos presenteando uma de quase quarenta com um brinquedo. Era apenas o que estava aparente ou sobre a superfície, porque na verdade, tratava-se de uma mãe presenteando a filha que ainda não deveria ter atingido seus seis sete anos de idade. Ela precisava tentar resgatar a criança que havia abandonado. Era agora a mulher culpada, cheia de remorsos e arrependida. Olhava a filha crescida e via ainda a criança, com quem precisava dialogar e, principalmente, agradar. 

Eu li em seus olhos quanto arrependimento ela vem guardando todos esses longos quarenta anos. Uma boa dose de piedade tomou conta de mim, o que não costuma acontecer com frequência, e minha armadura desmoronou. Finalmente, compreendi que não podia alimentar ainda mais a culpa que ela guardava, pois já era um fardo muito pesado pra carregar. Olhei pra mim e vi a mulher que me tornei, era inexoravelmente a pessoa da relação que mais tinha condição de lutar pra tornar essa relação mais saudável. Era a pessoa que tinha as ferramentas adequadas para transformar uma relação cheia de desconfianças e rancores em algo leve e saudável. Percebi que podia ser sua companheira e ajuda-la a superar a culpa e o remorso, pois hoje gosto do que me tornei. Percebo que amadureci e construí uma base sólida onde posso pisar. Sei que na minha caminhada haverá momentos em que vou maldizer o instante que nasci, que vou me sentir infeliz e desgraçada, vou chegar ao fundo do poço, mas também sei que irei retomar as rédeas da minha vida e cavalgar bravamente até a saída do fundo poço e é isso que me faz não cogitar a possibilidade de me tornar outra pessoa, é isso que me enche de satisfação, pois sem essa certeza eu viveria me vitimizando e esperando que os outros atuassem por mim. Compreendo que tenho que olhar essa mulher, que é minha mãe, não pela ótica da menina abandonada e sim pela ótica da mulher adulta, instruída e madura. A mulher que teve mais oportunidades que a mãe e que consegue se sensibilizar com o mundo a sua volta. 

Encharcada depois um banho de chuva escondido à noite
Embora seja forte, minha mãe precisa de apoio e de referencial, e por mais esdrúxulo que possa parecer, esse referencial sou eu. Eu sou a mulher que ela gostaria de ter sido, ou ser. Seu olhar me revela quase que uma reverência a mim e o que me tornei. Percebo que ela me olha com muito respeito e tem orgulho de ser minha mãe. Ela precisa saber que pode contar comigo, que pode caminhar até mim quando tudo parecer estar desabando. E preciso estar pronta a oferecê-la o apoio esperado. Ela não tem medo de pedir socorro, se mostrar frágil, de esperar por uma mão pra auxilia-la a levantar depois da queda. Já eu, dificilmente me mostro fragilizada ou peço ajuda. Minha mãe é de uma generosidade intrigante, partilha do que tem com quem quer que seja.  Sua simplicidade é assombrosa, quase não tem vaidade. Esse afirmação de que a mãe não tem vaidade lembra bem a conversa machista de filhinho que endeusa a mãe, não é mesmo? Parece mesmo, mas lamento dizer que não se trata disso. Minha mãe realmente aparenta não ter nenhuma vaidade. Eu até tento estimula-la a usar maquiagem, mudar o corte de cabelo, calçar sandálias altas, mas ela se nega totalmente. Parece que tem medo de ser feminina!
 
Apesar da mudança de perspectiva não consigo vê-la com olhos de filha, acho que esse vínculo nunca vai se criar. Podemos ser amigas e posso manter o carinho que tenho dela como o carinho que se tem a uma tia. Mas vínculo entre mãe e filha eles foram perdidos na infância. Não falo isso com rancor ou penso que isso deva ocorrer porque não quero que esses vínculos se formem. Mas, pelo simples fato de que ser mãe representa a formação de uma ligação de uma forma inconsciente, como a que formei com minha avó, cujo  rosto foi o que vi por mais de quinze anos sempre ao dormir, acordar, almoçar jantar... Esses vínculos se formaram sem que alguém me dissesse essa ai é sua mãe. É essa mulher que cuida de você, que desperdiça tempo e energia pra suprir suas necessidades básicas, ela foi a mãe que conheci.

Não obstante os vínculos, não dá pra recordar com carinho dos momentos que passei com ela. Minha avó não era um exemplo de mãe e nunca recebi um abraço, um elogio, um beijo ou outras demonstrações de carinho, apenas agressões físicas e verbais. De qualquer forma, não sofro mais por isso. Afinal, minha avó também foi vítima da mesma educação que tive e ela apenas reproduziu o esquema de educação que aprendeu. Cabe a mim romper esse ciclo de “desamor” caso resolva ainda ter um filho.

Não sei se mãe de cachorro e gato conta. Mesmo assim, ficam com vocês as fotos dos meus bebês, quase sempre fazendo traquinagens. Não tenho fotos das minhas mães, fico devendo as delas.

 








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