domingo, 7 de setembro de 2014

E se sua mãe tivesse te abortado?




Em pesquisas envolvendo aborto a população brasileira denuncia sua extrema necessidade de controlar o corpo feminino, seu conservadorismo e hipocrisia. Pesquisa do Datafolha , divulgada hoje no jornal O Povo, concluiu que 65% da população brasileira e 67% dos cearenses são contrários à mudança da legislação que considera crime o aborto, salvo em casos de estupro e de risco de vida da mãe. Em contrapartida, a Pesquisa Ibope  que ouviu a opinião dos brasileiros sobre temas como casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalização da maconha e outros, divulgada na última quarta-feira (3), no portal G1, revelou que 79% dos entrevistados são contra o aborto.
Enquanto isso, no Brasil, por ano são realizados 1 milhão de abortos clandestinos e 250 mil internações por complicações de procedimentos mal sucedidos. É a segunda causa de internamentos por procedimento da ginecologia. A mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro. Segundo a OMS, são realizados anualmente 20 milhões de abortos inseguros no mundo inteiro. Ainda de acordo com a organização, entende-se por aborto inseguro a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene. Os procedimentos realizados clandestinamente estão fortemente associados a morte de mulheres – são quase 70 mil todos os anos.  (Fonte: Grupo de Estudos do Aborto -GEA)
Além dos riscos cirúrgicos que envolvem o aborto inseguro há também os riscos que resultam da ingestão de medicamentos sem acompanhamento médicos e que muitas vezes acabam provocando hemorragia e morte. Sem contar que em algumas situações a mulher acaba caindo em mãos de bandidos que usam o seu desespero para extorqui-la, chantageá-la praticar outros crimes. Exemplo desse último risco é o caso da Jandira, desaparecida desde o último dia 26 quando se encaminhava para uma clínica de aborto clandestina.
Grávida de três meses e duas semanas, Jandira desapareceu após entrar no carro de uma suspeita, identificada apenas como Rose, com outras três mulheres, na Rodoviária de Campo Grande, como revelou na última quarta-feira uma reportagem da rádio CBN. As mulheres iriam realizar um aborto. Jandira estava acompanhada do ex-marido Leandro Brito Reis. O filho que a vítima estava esperando era fruto de um outro relacionamento de cerca de cinco meses, segundo contou Maria Ângela, mãe da vítima.  Extra/O Globo.
 
Na manhã de sexta-feira, o ex-marido da gestante, Leandro Brito Reis, esteve na 35ª DP (Campo Grande), prestando novos depoimentos sobre o desaparecimento de Jandira. Ela sumiu depois de entrar em um carro, na Rodoviária de Campo Grande, que supostamente a levaria a uma clínica de aborto. Leandro desconfiou da atitude dois homens na Rodoviária de Campo Grande, no último dia 26. Eles teriam dito ao ex-marido de Jandira que estavam acompanhando uma das outras duas jovens que entraram no carro com a grávida.  O Globo

A ultimas informações sobre o caso dão conta que “Agentes da Divisão de Homicídios (DH), da Polícia Civil, que investigam o desaparecimento de Jandira Magdalena dos Santos, trabalham com a hipótese de um corpo encontrado carbonizado, no dia 27 de agosto, em Guaratiba, ser o da jovem grávida, que foi vista pela última vez no dia anterior. Um exame de DNA, a partir de material coletado de Maria Magdalena dos Santos, mãe de Jandira, vai comprovar ou não a suspeita. A família de Jandira, no entanto, descarta a possibilidade de o cadáver ser da moradora de Campo Grande. O corpo, encontrado dentro de um carro um dia depois de seu desaparecimento em Guaratiba, na Zona Oeste, já tinha sido visto pela irmã da vítima, Joyce Liane, de 32 anos, no Instituto Médico Legal.” O Globo
Jandira pode ter sido uma vítima fatal desse sistema dominado por homens e regido por leis também elaboradas por eles. São leis que punem as mulheres e negam-lhe o direito sobre o próprio corpo.
Jandira sou eu e é muitas outras garotas que por algum motivo tem de passar pela difícil decisão de interromper uma gravidez indesejada (?) ou não planejada (?). Porque a opção pelo aborto envolve sofrimento, não é uma escolha inconsequente, é uma renúncia. Diferentemente do que pensam alguns hipócritas, ninguém opta pelo aborto pelo simples prazer de abortar, porque mesmo nos casos em que ele é realizado com toda segurança e cuidados ainda sim irá envolver riscos, dores físicas e emocionais, culpa, medo rejeição e muitos outros sentimentos culpabilizantes. E apesar de todo medo, dor e angústia muitas de nós se submete aos vários riscos do aborto seguro e inseguro por estarmos certas de que estes efeitos serão menores que os advindos de uma gravidez não desejada (?) ou planejada (?).  
Portanto, não é a criminalização que vai impedir que sejam realizados abortos, haja visto que são efetuados 1 milhão de procedimentos clandestinos somente no Brasil. O que se espera do Estado é que cuide dessa mulher que precisa realiza-lo e que impeça que sua escolha resulte num dano maior, como no caso das 250 mil internações por abortos mal sucedidos e das mortes decorrentes destes.
Mas e se eu fosse o feto?

“Já me perguntaram algumas vezes ‘E se sua mãe tivesse te abortado?’ e aí vai a minha resposta. Se minha mãe tivesse me abortado:

Possibilidade 1: Ela teria morrido, pois, como mulher negra pobre periférica, não poderia ir a uma clínica de aborto, muito menos viajar para outro país onde se poderia fazer o aborto legal e seguro - como as ricas fazem.
Possibilidade 2: Ela teria sido presa, pois o aborto, no nosso país, é crime.

Possibilidade 3: Ela não teria passado pelo drama de ser mãe solteira (e abandonada) em uma família pobre e religiosa. Ela não teria que ter saído de casa tão cedo. Ela não teria passado fome. Ela não teria abandonado seus estudos. Ela poderia ter feito uma graduação em ensino superior. Ela não precisaria ter se submetido a um branco burguês, do qual depende até hoje para ter uma vida minimamente decente. Ela poderia ter tido uma vida muito melhor do que ela tem hoje e, quando escolhesse ter umë filhë, estü também viveria melhor do que eu vivi.

Muitas mulheres quando engravidam, especialmente se for na adolescência, entram em um estado de desespero tão grande, que se sujeitam às duas primeiras possibilidades na esperança de obter a terceira. Porém isto é pouco palpável para uma mulher negra pobre periférica do Brasil atual. Minha mãe preferiu não arriscar.

Note uma coisa, isso não foi uma ‘livre escolha’. O medo, a influência moral da igreja, a repressão do Estado e a opressão do capital e do patriarcado restringiram as escolhas dela em ‘se ferrar’ ou ‘se foder’, para dizer grosseiramente. Isso tudo poderia ser evitado se ela tomasse anticoncepcional? Não, são as causas pelas quais eu luto que poderiam ter evitado, de fato, essas situações. Mas, se quer saber, ela tomava sim anticoncepcional. 

E, mesmo que não tivesse tomado, não vem com essa porra de jogar toda a responsabilidade para cima dela, reiterando a ideia de que ‘mulher tem que se preservar’ e bla bla bla. O senso comum não se importa com o aborto dos homens - que, aliás, é extremamente comum. Meu progenitor (genericamente conhecido como ‘pai’) me abortou e ninguém, NUNCA, foi atrás dele. Ele não sofreu nenhum rechaço, ele não foi responsabilizado, nem ao menos consideraram o abandono dele durante a gravidez um aborto. Só que foi.

Agora, se sua pergunta vai no sentido de querer saber como EU me sentiria se eu tivesse sido abortada pela minha mãe, vai me desculpar, vou te chamar de sem noção, pois não há nexo algum em perguntar como um FETO se sentiria diante de um problemática social, nem sequer consciência eu tinha (e, porra, no seu conceito, o que um feto "sente" realmente está acima do que sentem as mulheres que querem/precisam abortar?). É óbvio que todo mundo que é contra o aborto já nasceu, não tem como ter senso crítico sem ter nascido. Então, aproveita que você, como eu, também nasceu e usa o seu.

Eu quero aborto legal, seguro e gratuito." (Lary Carvalho - Feminista negra classista e militante LGBT)
Eu, Ana Eufrázio, também quero aborto legal, seguro e gratuito.

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