segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Quando falamos de aborto estamos falando de que mesmo?



Estamos falando de cerca de 1.1 milhão de procedimentos inseguros realizados anualmente por mulheres pobres na América Latina. No Brasil, são realizados 1 milhão de abortos e 250 mil internações por complicações de procedimentos mal sucedidos. A mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro. São 70 mil mortes anuais no mundo inteiro, um número alarmante e preocupante. 


Estamos falando de Jandira, desaparecida no último dia 26 quando se encaminhava para uma clínica de aborto clandestina.
“Grávida de três meses e duas semanas, Jandira desapareceu após entrar no carro de uma suspeita, identificada apenas como Rose, com outras três mulheres, na Rodoviária de Campo Grande, como revelou na última quarta-feira uma reportagem da rádio CBN. As mulheres iriam realizar um aborto. Jandira estava acompanhada do ex-marido Leandro Brito Reis. O filho que a vítima estava esperando era fruto de um outro relacionamento de cerca de cinco meses, segundo contou Maria Ângela, mãe da vítima.  Extra/O Globo.
No último dia 23, o delegado que cuidava do caso informou que um exame de DNA confirmou as suspeita de que um corpo carbonizado encontrado dentro de um carro em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, com as digitais e os dentes arrancados, é de Jandira. Uma das suspeitas de participar do assassinato, Rosemere Aparecida Ferreira, afirmou que houve complicações durante o procedimento de Jandira.
Estamos também falando Elizângela Barbosa, de 32 anos, grávida de 5 meses (segunda vítima fatal do mercado clandestino de aborto em menos de um mês) e mãe de três filhos, morta em Niterói, depois de ter sido deixada pelo marido, o pintor industrial Anderson Santos da Silva de 27 anos,  na Estrada da Tenda, na periferia de São Gonçalo, por volta de 8h de sábado, para realizar um aborto. No local, ela se encontrou com um homem que a teria levado a uma clínica clandestina no bairro Sape, em Niterói. No entanto, às 22h de domingo, ela foi deixada sem vida no Hospital Estadual Azevedo.

Lamentavelmente, essas duas mulheres deram rostos para as estatísticas (a cada dois dias uma brasileira - pobre - morre por aborto inseguro) dos procedimentos inseguros que resultam em morte. Mas, não há rostos para os casos que terminam em infertilidade, histerectomia parcial ou total, sinéquias uterinas dentre outras sequelas resultantes de procedimentos realizados por profissionais não capacitados e em ambientes inadequados.
Mas quem são essas mulheres que passam por procedimentos clandestinos? Mulheres de todas as classes sociais, seguidoras de todas religiões, que já foram ou não mães. Entretanto, a maioria esmagadora das que fazem aborto inseguro, e que se arriscam a perder a vida, são mulheres pobres, 95% destas. O risco de morte entre mulheres negras é 2,5 maiores do que entre mulheres brancas. Os 5% restante, realiza esse procedimento de forma e em ambiente seguro e com um profissional capacitado. No final das contas estamos falando de um processo discriminatório que mata e mutila milhares de mulheres pobres. Estamos falando da maternidade compulsória para mulheres que não podem pagar pelo procedimento abortivo seguro. Para estas mulheres o procedimento acessível revela que quanto menor o preço do procedimento maior o risco de morte.

A realidade do aborto no Brasil é de uma hipocrisia tão grande que a discussão em torno do tema sequer é capaz de sair da superficialidade do debate em torno de questões morais e religiosas. Entretanto, a discussão deve estar pautada em termos saúde pública, levando em conta que o país é laico e que o abortamento é, inclusive, um processo natural que ocorre em até 20% dos casos clinicamente detectados nas gestações até 20 semanas e que cerca de 50% dos óvulos fecundados nunca vai resultar numa gestação.
O problema com o aborto não envolve só o lobby da igreja no intuito de barrar esses projetos, também tem relação com o preconceito que há com sexualidade da mulher, principalmente, a da mulher pobre e negra. Porque a mulher de classe média ou rica pode namorar ou dar pra quem quiser que é apenas uma mulher liberal, já a mulher pobre é “uma puta que dá pra todo mundo” e se ela engravida, “tem de ter o filho porque se ela abriu as pernas foi porque quis e tem de arcar com os ônus em decorrência disso”. Já a garota de classe média engravidou por acidente e não pode ter o filho porque vai atrapalhar nos estudos ou na vida profissional. 

O preconceito com a mulher pobre é tamanho que sequer se leva em consideração que entre elas o acesso à informação, aos meios contraceptivos e a negociação com o parceiro são muito mais difíceis que entre as garotas da classe média. São muitos os casos de garotas que dividem a cartela de anticoncepcionais entre as amigas achando que só precisam toma-los nos dias que tiverem relações com os parceiros. Além disso, quem nunca ouviu que mulheres que andam com camisinha na bolsa são vadias, ou até mesmo homens falando que camisinha é usada com ou por vadias? Também não se leva em consideração que entre as mulheres pobres a falta de perspectiva leva as garotas a considerarem que a gravidez poderia ser uma maneira de constituir sua própria família. No entanto, no meio desse processo as expectativas quanto a essa possibilidade podem mudar, ela pode ser abandonada pelo parceiro, perceber que talvez ele não seja o parceiro ideal para forma o seu próprio núcleo familiar. Então, são muitos os motivos que levam a uma gravidez indesejada, mas sempre a culpada pela gravidez é unicamente a mulher.
É sempre a mulher que não se cuidou, é sempre ela que não escolheu o parceiro certo, é sempre ela que deu bobeira, é sempre a mulher que deve arcar com o ônus de ter se permitido engravidar. Já o homem, mesmo tendo contribuído em 50% com a fecundação do óvulo, pode se eximir de toda a responsabilidade não só da concepção (fato que já ficou claro quando foi alegado que a culpa da gravidez indesejada é da mulher) como também pode se alienar completamente da paternidade. 

“Mais de um terço das famílias brasileiras é monoparental. Quase a totalidade delas sob a responsabilidade de mulheres, situando-se entre os domicílios de mais baixa renda do país. As mães hoje são provedoras, cuidadoras, chefes de família, trabalhadoras em um mercado que ainda lhes paga salários inferiores aos dos homens, agravando a situação de grupo significativo de mulheres, que, inclusive, não tinha a expectativa de criar filhos sozinhas”, Ana Liési,socióloga, em Saúde Plena.
 
O engraçado é que, mesmo diante das estatísticas acima, são os homens  os que mais se revoltam com o aborto. A realidade é que uma das dificuldades em evitar uma gravidez indesejada diz respeito ao homem que acha que usar camisinha reduz o prazer e que usa de vários jogos para fragilizar a resistência feminina. Então, quando o coito interrompido, transar em pé, ou dar vários para evitar a concepção não funciona vários parceiros vão alegar que o filho não é dele e que elas que se virem para “resolver o problema”, sem falar naqueles que simplesmente somem após saberem da gravidez. Então, resta à mulher carregar o peso da maternidade sozinha. 

Mas, como não são os homens que obrigatoriamente vão carregar no próprio corpo um feto não desejado ou planejado; como não vão ser os homens que vão ter suas rotinas, corpos, sono completamente alterados; como não vão ser os homens que vão ter de sentir as dores do parto; e, pra finalizar, como são eles que podem nem querer saber da existência da criança são os homens que barram os avanços nas discussões sobre o assunto.
Mas como pano de fundo dessa discussão se esconde uma realidade de controle da sexualidade feminina, de submissão e controle da mulher através da maternidade compulsória. Impedir que a mulher possa escolher se gostaria de levar adiante uma gravidez é alienar o corpo feminino.
Então, me permita uma última pergunta; qual diferença fará na sua vida eu ter sofrido um aborto espontâneo há um ano atrás? Você sequer percebeu que eu estava grávida. Não contei para minha mãe, para os vizinhos, não contei pra ninguém que estava grávida. Exceto eu, meu companheiro, duas amigas e a minha obstetra sabiam que eu estava grávida. Sofri um aborto espontâneo porque era uma gravidez anaembrionada. Você não sofreu por que eu, uma mulher de mais de 40 anos - esperando o primeiro filho do casal - engravidei mas o feto não ter se formou. Não sofreu porque não lhe diz respeito, porque você não participa da minha vida e até mesmo porque você sequer sabia da minha existência e mesmo que me conhecesse, e mesmo que convivesse comigo, você sequer saberia que eu estava tentando engravidar, muito menos que eu estava grávida. Portanto, o que ocorre no meu corpo não lhe diz respeito e você precisa entender que concepção, gestação e maternidade tem relação com a minha liberdade e com a minha vida, não com a sua. Afinal, você não vai adotar o filho que eu rejeitar ou vai arcar com as despesas ou educação de um filho que tiver.  

A próxima vítima de uma gravidez indesejada por ser sua irmã, namorada, esposa, filha, mãe! Você prefere que ela morra ou que apodreça na cadeia?


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