Estamos
falando de cerca de 1.1 milhão de procedimentos inseguros realizados anualmente
por mulheres pobres na América Latina. No Brasil, são realizados 1 milhão de
abortos e 250 mil internações por complicações de procedimentos mal sucedidos. A
mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro. São 70 mil
mortes anuais no mundo inteiro, um número alarmante e preocupante.
Estamos falando de Jandira,
desaparecida no último dia 26 quando se encaminhava para uma clínica de aborto
clandestina.
“Grávida de três meses e duas semanas, Jandira desapareceu
após entrar no carro de uma suspeita, identificada apenas como Rose, com outras
três mulheres, na Rodoviária de Campo Grande, como revelou na última
quarta-feira uma reportagem da rádio CBN. As mulheres iriam realizar um aborto.
Jandira estava acompanhada do ex-marido Leandro Brito Reis. O filho que a
vítima estava esperando era fruto de um outro relacionamento de cerca de cinco
meses, segundo contou Maria Ângela, mãe da vítima. Extra/O Globo.
No
último dia 23, o delegado que cuidava do caso informou que um exame de DNA
confirmou as suspeita de que um corpo carbonizado encontrado dentro de um carro
em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, com as digitais e os dentes arrancados, é
de Jandira. Uma das suspeitas de participar do assassinato, Rosemere Aparecida
Ferreira, afirmou que houve complicações durante o procedimento de Jandira.
Estamos
também falando Elizângela Barbosa, de 32 anos, grávida de 5 meses (segunda
vítima fatal do mercado clandestino de aborto em menos de um mês) e mãe de três
filhos, morta em Niterói, depois de ter sido deixada pelo marido, o pintor
industrial Anderson Santos da Silva de 27 anos,
na Estrada da Tenda, na periferia de São Gonçalo, por volta de 8h de
sábado, para realizar um aborto. No local, ela se encontrou com um homem que a
teria levado a uma clínica clandestina no bairro Sape, em Niterói. No entanto,
às 22h de domingo, ela foi deixada sem vida no Hospital Estadual Azevedo.
Lamentavelmente,
essas duas mulheres deram rostos para as estatísticas (a cada dois dias uma brasileira - pobre - morre por aborto
inseguro) dos procedimentos inseguros que resultam em morte. Mas, não há rostos para os casos que
terminam em infertilidade, histerectomia parcial ou total, sinéquias uterinas
dentre outras sequelas resultantes de procedimentos realizados por
profissionais não capacitados e em ambientes inadequados.
Mas
quem são essas mulheres que passam por procedimentos clandestinos? Mulheres de
todas as classes sociais, seguidoras de todas religiões, que já foram ou não
mães. Entretanto, a maioria esmagadora das que fazem aborto inseguro, e que se
arriscam a perder a vida, são mulheres pobres, 95% destas. O risco de morte
entre mulheres negras é 2,5 maiores do que entre mulheres brancas. Os 5%
restante, realiza esse procedimento de forma e em ambiente seguro e com um
profissional capacitado. No final das contas estamos falando de um processo
discriminatório que mata e mutila milhares de mulheres pobres. Estamos falando
da maternidade compulsória para mulheres que não podem pagar pelo procedimento
abortivo seguro. Para estas mulheres o procedimento acessível revela que quanto
menor o preço do procedimento maior o risco de morte.
A
realidade do aborto no Brasil é de uma hipocrisia tão grande que a discussão em
torno do tema sequer é capaz de sair da superficialidade do debate em torno de
questões morais e religiosas. Entretanto, a discussão deve estar pautada em
termos saúde pública, levando em conta que o país é laico e que o abortamento
é, inclusive, um processo natural que ocorre em até 20% dos casos clinicamente
detectados nas gestações até 20 semanas e que cerca de 50% dos óvulos
fecundados nunca vai resultar numa gestação.
O
problema com o aborto não envolve só o lobby da igreja no intuito de barrar
esses projetos, também tem relação com o preconceito que há com sexualidade da
mulher, principalmente, a da mulher pobre e negra. Porque a mulher de classe média ou
rica pode namorar ou dar pra quem quiser que é apenas uma mulher liberal, já a
mulher pobre é “uma puta que dá pra todo mundo” e se ela engravida, “tem de ter
o filho porque se ela abriu as pernas foi porque quis e tem de arcar com os
ônus em decorrência disso”. Já a garota de classe média engravidou por acidente
e não pode ter o filho porque vai atrapalhar nos estudos ou na vida
profissional.
O
preconceito com a mulher pobre é tamanho que sequer se leva em consideração que
entre elas o acesso à informação, aos meios contraceptivos
e a negociação com o parceiro são muito mais difíceis que entre as garotas da
classe média. São muitos os casos de garotas que dividem a cartela de
anticoncepcionais entre as amigas achando que só precisam toma-los nos dias que
tiverem relações com os parceiros. Além disso, quem nunca ouviu que mulheres
que andam com camisinha na bolsa são vadias, ou até mesmo homens falando que
camisinha é usada com ou por vadias? Também não se leva em consideração que
entre as mulheres pobres a falta de perspectiva leva as garotas a considerarem
que a gravidez poderia ser uma maneira de constituir sua própria família. No
entanto, no meio desse processo as expectativas quanto a essa possibilidade
podem mudar, ela pode ser abandonada pelo parceiro, perceber que talvez ele não
seja o parceiro ideal para forma o seu próprio núcleo familiar. Então, são
muitos os motivos que levam a uma gravidez indesejada, mas sempre a culpada
pela gravidez é unicamente a mulher.
É
sempre a mulher que não se cuidou, é sempre ela que não escolheu o parceiro
certo, é sempre ela que deu bobeira, é sempre a mulher que deve arcar com o
ônus de ter se permitido engravidar. Já o homem, mesmo tendo contribuído em 50%
com a fecundação do óvulo, pode se eximir de toda a responsabilidade não só da
concepção (fato que já ficou claro quando foi alegado que a culpa da gravidez
indesejada é da mulher) como também pode se alienar completamente da
paternidade.
“Mais de um terço das
famílias brasileiras é monoparental. Quase a totalidade delas sob a
responsabilidade de mulheres, situando-se entre os domicílios de mais baixa
renda do país. As mães hoje são provedoras, cuidadoras, chefes de família,
trabalhadoras em um mercado que ainda lhes paga salários inferiores aos dos
homens, agravando a situação de grupo significativo de mulheres, que,
inclusive, não tinha a expectativa de criar filhos sozinhas”, Ana Liési,socióloga, em Saúde Plena.
O engraçado
é que, mesmo diante das estatísticas
acima, são os homens os que mais se
revoltam com o aborto. A realidade é que uma das dificuldades em evitar uma
gravidez indesejada diz respeito ao homem que acha que usar camisinha reduz o
prazer e que usa de vários jogos para fragilizar a resistência feminina. Então,
quando o coito interrompido, transar em pé, ou dar vários para evitar a
concepção não funciona vários parceiros vão alegar que o filho não é dele e que
elas que se virem para “resolver o problema”, sem falar naqueles que
simplesmente somem após saberem da gravidez. Então, resta à mulher carregar o
peso da maternidade sozinha.
Mas,
como não são os homens que obrigatoriamente vão carregar no próprio corpo um
feto não desejado ou planejado; como não vão ser os homens que vão ter suas
rotinas, corpos, sono completamente alterados; como não vão ser os homens que
vão ter de sentir as dores do parto; e, pra finalizar, como são eles que podem
nem querer saber da existência da criança são os homens que barram os avanços
nas discussões sobre o assunto.
Mas
como pano de fundo dessa discussão se esconde uma realidade de controle da
sexualidade feminina, de submissão e controle da mulher através da maternidade
compulsória. Impedir que a mulher possa escolher se gostaria de levar adiante uma
gravidez é alienar o corpo feminino.
Então,
me permita uma última pergunta; qual diferença fará na sua vida eu ter sofrido
um aborto espontâneo há um ano atrás? Você sequer percebeu que eu estava
grávida. Não contei para minha mãe, para os vizinhos, não contei pra ninguém
que estava grávida. Exceto eu, meu companheiro, duas amigas e a minha obstetra
sabiam que eu estava grávida. Sofri um aborto espontâneo porque era uma gravidez
anaembrionada. Você não sofreu por que eu, uma mulher de mais de 40 anos - esperando
o primeiro filho do casal - engravidei mas o feto não ter se formou. Não sofreu
porque não lhe diz respeito, porque você não participa da minha vida e até
mesmo porque você sequer sabia da minha existência e mesmo que me conhecesse, e
mesmo que convivesse comigo, você sequer saberia que eu estava tentando
engravidar, muito menos que eu estava grávida. Portanto, o que ocorre no meu
corpo não lhe diz respeito e você precisa entender que concepção, gestação e
maternidade tem relação com a minha liberdade e com a minha vida, não com a
sua. Afinal, você não vai adotar o filho que eu rejeitar ou vai arcar com as despesas
ou educação de um filho que tiver.
A próxima vítima de uma gravidez indesejada por ser sua irmã, namorada, esposa, filha, mãe! Você prefere que ela morra ou que apodreça na cadeia?
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