quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Quem foram as mulheres "Coca-Colas"?



A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial representou um marco na vida do povo fortalezense. No início do conflito o Brasil preferiu manter-se neutro, entretanto, viu-se obrigado a tomar partido depois de alguns ataques a navios brasileiros. Getúlio Vargas optou por lutar ao lado dos EUA, Inglaterra e França, ou seja, compondo o núcleo dos aliados. A partir de um acordo entre o governo brasileiro e Washington, em 1942, foram instaladas aqui em Fortaleza um aeroporto e bases norte-americanas. Em 1941, exatamente onde hoje se encontra a Universidade Federal do Ceará (UFC), foi iniciada a construção da base do Pici. O aeroporto de Cocorote, derivado da expressão em inglês “The Coco route”, ou a rota do rio Cocó, teve sua construção iniciada em 1943, em 13 de maio de 1952 passou a chamar-se de Aeroporto Internacional Pintos Martins. Estima-se que do início de 1943 até 1946 tenham passado pela capital cearense 50 mil militares norte-americanos. 



A permanência das tropas ianques em terras tupiniquins foi responsável por uma mudança significativa no modo de vida do povo fortalezense e de outros por onde passaram. Segundo as más línguas, o American way of life trazido pelos militares e exibido através das películas hollywoodianas, associado à beleza dos norte-americanos, facilmente comparável a dos ídolos do cinema, foram responsáveis pela propagação do “americanismo paganizante”, das “condutas chocantes” e dos “namoros indecorosos”. Apesar da presença das tropas estrangeiras e o cinema terem influenciado toda a sociedade e mudado seus hábitos e costumes, seja através da assimilação da língua, no aumento do consumo de produtos importados ou na reprodução dos comportamentos exibidos nas telas, a mulher surge como a maior vítima da influência “maléfica” do modernismo trazido pelo estilo de vida americano e protagonista de “graves agressões aos bons costumes e a boa moral” dos seus habitantes.
Na década de 1940, sendo a mulher considerada responsável por um dos pilares de sustentação da sociedade, a família, sua conduta deveria ser irrepreensível e acima de qualquer suspeita, ou seja, sua moral ilibada. De certa forma, isso implicaria em extrema fragilidade, honra, amorosidade, submissão em relação ao homem e dedicação exclusiva vida doméstica. A presença dos militares e o cinema abalaram completamente essas premissas e fizeram surgir o que ficou conhecido como mulher “Coca-Cola”. O termo que para época era pejorativo, designava mulheres que, assim como a bebida, eram usadas pelos americanos e jogadas fora. Receberam essa alcunha as garotas que se envolveram com os militares norte-americanos ou frequentaram as festinhas promovidas por eles, algumas delas realizadas no U.S.O. (United States Organization), clube onde os ianques se reuniam, consumiam a bebida e distribuíam às suas convidadas. Exatamente por poderem ingerirem a bebida, novidade trazida pelas tropas, é que receberam esse apelido. Atualmente o U.S.O é chamado de Estoril

As mulheres “Coca-Colas” quebraram paradigmas ao ousarem desafiar a moral da época. Contrariando o que pregava o manual dos bons costumes, que na época rezava que moça de família não poderia sequer andar de mãos dadas ou sozinha na companhia de um homem, elas se deixaram seduzir pelas belezas e porte físico dos desconhecidos visitantes (americanismo paganizantes), namoravam á noite sobre as areias (namoros indecorosos) da praia de Iracema, entravam abraçadas nos cinemas e sorveterias (condutas chocantes), lançaram modas e terminologias, além de adotarem muitas gírias.  É lógico que esse comportamento vanguardista não poderia sair impune, elas pagaram um preço bem alto por suas transgressões, tanto é que muitas delas tiveram seus nomes circulando em listas como namoradas de americanos, no que poderíamos considerar uma espécie rudimentar de pornografia de revanche, é lógico que mantidas as devidas proporções. No entanto, tal como ocorre atualmente com as vítimas da pornografia de revanche, algumas dessas mulheres tiveram de mudar-se do Estado para poderem arranjar um casamento, já que eram repudiadas pelos garotos que as conheciam e suas respectivas famílias. Além disso, esse apelido ainda hoje é usado para se referirem a elas e ainda sugere uma espécie de estigma, já que as “Coca-Colas” se fecharam num silêncio que mantêm até hoje, quase 60 anos depois, quando o assunto envolve as transgressões. Apesar de terem sido mal faladas, segundo consta, essas não eram as mulheres “usadas” pelos americanos, já que eram moças de famílias tradicionais que pertenciam a sociedade fortalezense. 

As mulheres que realmente foram violadas, usadas e jogadas à prostituição foram a mulheres pobres. Sobre elas a alcunha de “Coca-Cola” não teve o mesmo peso. De fato, o que pesou sobre elas foi a possibilidade de fugir da pobreza arranjando um casamento com um desses rapazes ou o dinheiro que eles lhes davam em troca de favores sexuais.

Naturalmente, as “Coca-colas” foram responsáveis pela derrubada de tabus e quebra de paradigmas. Elas incitaram o rompimento com um sistema de opressão que engessava as moças da década de 40 num sistema de extrema dominação e subserviência. Apesar das motivações das transgressões terem sido o “American way of life” e a beleza norte-americana, ambos propositadamente usados para seduzir e conquistar aliados, essas mulheres desafiaram a cultura extremamente machista e provinciana e conseguiram conquistar um pouco mais de liberdade, importante passo para que suas sucessoras continuassem conquistando cada vez mais espaço num mundo de domínio exclusivamente masculino. Esse comportamento transgressor suscitou descontentamento, mas também questionamentos, inquietação, e, principalmente, novas maneiras de pensar o cotidiano das moças, os espaços de atuação feminina, as formas de se relacionar com elas, como também os locais e as formas de recreação da época. Em suma, as “Coca-Colas” abalaram um sistema de extremo conservadorismo e promoveram severa perturbação na estrutura social da cidade, marcando definitivamente uma época.

1 comentário:

Unknown disse...

E viva nossas precursoras!!!
Imaginemos um sistema atuando até hoje, se não fossem as lutas de frente dessas guerreiras ousadas?
O maldito vínculo publicitário, ainda perdura em nossa sociedade! É oportuno e rentável, manter os estereótipos não?
Parabéns, Amélia é a Mãe! Boa matéria!!!!