Durante
muito tempo eu quis fugir de mim. Tinha uma vontade enorme de me distanciar de
tudo que pudesse me remeter ao meu passado, que sempre foi muito difícil. Eu
não queria esquecer que por muito tempo tinha pra comer apenas feijão boiando
n’água. Eu queria apagar esse passado. Eu não queria esquecer que precisava
mendigar ao meu avô alguns centavos pra comprar meio pão para comer antes de ir
pra escola. Eu não queria esquecer, queria deletar. Não me bastava esquecer as
muitas humilhações que passei nas casas dos vizinhos nos dias festas as
espreitas por trás de muros e portões a espera de um convite pra entrar e
degustar um copo de refrigerante com um pedaço de bolo. – Entra bicha rea, mas vai lá pros fundos pra não atrapalhar. Eu não queria esquecer isso, eu queria
excluir da minha memória e da memória de todos. Eu não queria esquecer as
inúmeras vezes que fui arrastada da rua até em casa a socos, pontapés, chutes e
chicotadas à base de cipós, queria banir da minha vida esses momentos. Eu não
queria esquecer que não tinha roupas ou sapatos novos pra ir às festinhas e
que era muito feia. Eu queria que varrer isso da memória. Eu não queria esquecer que minha primeira relação sexual havia sido um estupro, queria
inventar outra história que pudesse substituir essa e que não restasse da outra
sequer vestígio.
Então
eu fugia, inventava abrigos, outras histórias, outras realidades. Até que fui
embora pra outro bairro e inventei outro eu. Mas eu ainda não havia me
distanciado o suficiente porque os culpados pelo meu sofrimento ainda estava
ao meu lado e tinham autoridade sobre mim, eu ainda morava embaixo do teto
deles. Então, parti para um bairro mais distante e dei adeus definitivamente
aos controles que exerciam cotidianamente sobre mim e à sensação de que o meu
passado ainda me oprimia. Finalmente eu não convivia sob o mesmo teto com mais
ninguém que me remetesse aos momentos de tortura, de aspereza na voz e no trato
comigo. Mas ainda não podia ser outra, completamente outra. Porque ainda
encontrava com pessoas que me resgatavam da memória as dores dos espancamentos,
das humilhações, da violação ao meu corpo...
E,
em meio ao perder-se e encontrar-se encontrei um cara que me aceitou como eu
era, com toda dor, com toda a mágoa e usada como um lixo em relações sexuais
não consentidas. E eu quis me “redimir”. Inventei mais uma história, uma “linda
história”, onde o amor da minha vida seria também o meu “primeiro homem” e que
teria sido com ele que tive a minha primeira noite de amor.
Para
zerar tudo mesmo, mudei de cidade e comecei mais uma nova história. Sem dor,
sem sofrimento, sem angústia. Uma história dos sonhos. E finalmente não tinha
passado. Pelo menos o que vivenciei não. Na história dos meus sonhos eu teria
tido uma infância feliz, uma adolescência normal. Teria perdido a virgindade
com o meu marido. Teria namorado, noivado e casado, tudo conforme “manda o
figurino”. Muito embora, na prática, tenha namorado somente dois meses antes do
meu marido ter ido morar comigo e termos casados somente o civil quase depois
de dois anos morando junto. Entretanto eu ainda não havia conseguido fugir de
mim. Eu continuava carregando dentro de mim todos os meus algozes; a minha avó
alcoólatra, os tios violentos, os vizinhos escrotos e os estupradores.
Então
pensei, preciso de dinheiro para devolver na mesma moeda as humilhações que
sofri dos vizinhos, fazer uma faculdade e uma porção de outras coisas que
revelassem o meu “valor”, além de fazer com que meu casamento pudesse ser
comparado aos comerciais de planos de saúde. Só assim eu conseguiria anular meu
passado e voltar todas as atenções para quem me tornei, esquecendo-me e fazendo
esquecerem-se de quem fui. Por fim, demonstraria que não era um lixo e que havia
superado tudo. Restaria apenas a mulher inteligente, bem sucedida, bem casada,
classe média e de boa família, nada além disso.
Era
um baita desafio e desconfiava que talvez não conseguisse vence-lo, mas, se não
tentasse jamais saberia se conseguiria. Comecei passando no vestibular, numa
faculdade pública. Enquanto fazia faculdade compramos nosso apartamento.
Conclui o curso de Química, comprei meu carro e outros bens que poderiam tapar
o meu buraco existencial ou que me dessem status. Voltei para o bairro onde
morei (Ah, eu já estava de volta a minha cidade natal) como especialista
em Engenharia de Petróleo, aspirante a escritora, para uma casa grande e
confortável e, acima de tudo, uma pessoa bastante respeitável, num casamento
que já ultrapassava os 15 anos convivência. Mas eu ainda carregava dentro de mim meus
opressores. Estavam todos lá, os estupradores, a avó e os tios agressivos...
Então
o que me faltava pra excluir de vez o passado da minha memória?
Faltava-me
a compreensão de que por mais longe que eu fosse, seja figurativamente ou
geograficamente, eu nunca conseguiria fugir de mim ou do meu passado, porque
uma coisa é sinônimo da outra. Eu sou fruto de todas as experiências que vivi,
tenham sido elas boas ou ruins. Então, eu precisava abraçar esse passado de
forma que eu não precisasse me envergonhar ou sofrer por conta dele. Porque sou
uma pessoa muito forte graças a tudo que passei e tudo que construí foi em cima
desses tijolos que serviram de alicerce pra quem eu sou hoje.
Sofri
pra cachorro, fui humilhada, tratada inúmeras vezes como lixo, mas não conseguiram
me dobrar e me vencer. Não só sobrevivi como rompi com as expectativas que
criaram pra mim. Nenhum estuprador conseguiu me tornar uma mulher frígida e amedrontada. Nenhuma das pessoas que me menosprezou me impediu de seguir em
frente e chegar onde quis. Apesar de ter passado quase toda a vida sendo
agressiva e reproduzindo violência (seja na forma de grito, de quebrar coisas
ou indo as vias de fato) eu consegui entender que esse processo me causava
muito sofrimento e, que não me agradava ser assim, então consegui romper com
ele. Aprendi a driblar a dificuldade de estabelecer vínculos emocionais com as
pessoas, e hoje consigo lidar bem melhor com amigos, familiares e com meu
marido. Estou bem mais carinhosa e troco afetos com mais naturalidade. Já não
sinto dificuldade de abraçar, beijar ou dizer “eu te amo”.
Enfim,
os fantasmas do passado já não me assombram mais. Mas, acho que de tanto
desejar apagar tudo isso o meu desejo foi atendido e muita gente esqueceu o que
passei, só consegue ver o que me tornei. Esqueceram principalmente aquilo que faço
questão de lembrar que foram as lágrimas que derramei ou me fizeram derramar e
que nada foi fácil pra mim. Sou forte porque me fizeram forte, cresci porque
não me deixei abater pelos constrangimentos. Não me escondo mais e nem tenho
mais vergonha do que fui, afinal ninguém tem culpa de sofrer maus-tratos, ser
estuprada, ser pobre e ser humilhada por conta disso.
2 comentários:
Parabéns pelo texto e pela sua coragem, Ana!
Você é definitivamente uma mulher muito forte psicologicamente e eu a admiro imensamente.
Como fazer pra controlar a curiosidade com relação a identidade de um(a) adimiradxr anônimx?
Enviar um comentário