Paquistanesas vítimas de violência domestica. Fotos de Emílio Morenatti |
Texto de Salete Maria:
cordelista, professora e advogada.
Amigas e amigos, foi com bastante preocupação que
li, durante esta semana no facebook, alguns comentários sobre violência contra
a mulher e a suposta “culpa da vítima” pela ocorrência (ou recorrência) desta
inaceitável prática criminosa. Diante disto, menos como docente e advogada e
mais como militante feminista e anticapitalista, fiz um breve rabisco sobre a
questão e, como neste espaço não é possível desenvolver elucubrações acadêmicas
mais aprofundadas (embora eu me disponha a isto onde e quando necessário),
desejo apenas lançar alguns “senões” para esquentar e ampliar o debate. De toda
sorte, não consegui fazer um rabisco curto, pois o tema é demasiado complexo e
requer referências a outras questões correlatas. Mas, se tiverem paciência, por
favor leiam, reflitam e questionem o que estou expondo agora, pois é uma
modesta contribuição a essa discussão tão importante e tão necessário. Como
muita gente sabe, a violência contra as mulheres é um fenômeno presente nas
mais distintas sociedades. Trata-se de uma violação aos direitos humanos da
parcela feminina do globo e se converteu num dos maiores desafios do milênio
para diversas nações. Também sabemos que, a cada dia, os índices deste tipo de
violência se tornam cada vez mais alarmantes, vitimando mulheres das mais
variadas classes, regiões, raças/etnias, profissões, credos religiosos, etc.
Ninguém ignora que são lesões no corpo e na mente das mulheres, além dos
estupros e feminicídios perpetrados por homens que, em regra, são ou foram seus
namorados, maridos e amantes. É um fenômeno gravíssimo que tem sido estudado
com profundidade e interesse por profissionais de diversas áreas, até porque é
um problema que somente pode ser compreendido e enfrentado se adotarmos uma
postura crítica, interdisciplinar e, sobretudo, feminista da questão. Afinal, a
violência contra a mulher é uma violência que emerge (e que se reforça) através
da cultura, sendo resultado de uma visão de mundo que acredita e proclama que o
homem é o modelo do humano e que este vale mais do que a pessoa do sexo
feminino. É uma ideologia que sustenta que o “cabra macho” é o sujeito e a
mulher é o objeto das relações sociais. Enfim, decorre do patriarcado, que é um
modo de organização da sociedade onde somente o homem detém o poder de decisão
sobre todas as coisas e pessoas, gerando uma crença (o sexismo) na
superioridade deste com relação ao sexo oposto, isto é, o feminino. Como eu
disse, provém de uma ideia (ou convenção social) que vai sendo introjetada na mente
das pessoas de distintas classes, raças, sexos e graus de instrução, a ponto
destas (sejam analfabetas ou doutoras) sustentarem, em pleno século XXI, que
“existem mulheres que merecem ou gostam de apanhar”, dentre outros absurdos.
Bom, mas como isto vai passando, de uma geração a outra, como se fosse algo
natural (quer dizer, como se fosse da essência do homem mandar, bater e matar,
e da essência da mulher apanhar, aceitar e não reagir), criam-se estereótipos
de gênero, ou seja, modelos a serem seguidos por homens e mulheres, no que diz
respeito a papéis, funções e atitudes. Todavia, a gente que luta, estuda e
pensa criticamente sobre isto sabe que não é bem assim, que isto não é natural
e muito menos “normal”, pois é fruto de uma “fabricação” social e cultural tão
perversa quanto aquela que acredita que pessoas pobres e negras são inferiores
a pessoas brancas e ricas. Ou seja, é uma manifestação da articulação entre
diversos sistemas de dominação, como racismo/sexismo e capitalismo, dentre
outros. E, como todo problema social, tem sido objeto de análise, teorização e
intervenção, seja no âmbito psicológico ou das ações políticas e jurídicas
transformadoras. Ocorre que esta luta, como disse uma filósofa feminista, “é a
revolução mais longa” e, por mais conquistas que tenhamos alcançado,
lamentavelmente, ainda temos muito a percorrer, pois além das lutas e demandas
junto ao Estado e à sociedade, ainda há a ação de muitas pessoas, dentre elas
gente boa do nosso convívio que, por estarem imersas nesta ideologia dominante
e não saberem ou quererem criticá-la e superá-la, acabam colaborando com a
visão sexista de mundo, dificultando a consolidação dos avanços e a construção
de novos direitos para as mulheres. Sabemos que, muitas vezes, as pessoas não
se dão conta das tremendas desigualdades ainda existentes entre homens e
mulheres e não veem que, ao acha-las natural e ao concordar com certas
afirmações, estão reproduzindo, através da mídia ou de outros meios (seja de
modo sério ou como piadas e “brincadeiras”) a violência contra as mulheres,
dentre as quais muitas se incluem. Aliás, as desigualdades de gênero, que
muit@s teimam em não ver, são aquelas que nos privam do acesso aos direitos
(notadamente os sexuais e reprodutivos), às oportunidades de trabalho em determinadas
áreas, ao poder político, aos bens materiais e imateriais, às possibilidades
de, quando competentes, ocuparmos postos e cargos importantes e de sermos bem
remuneradas por isto e, até mesmo, as que nos impedem de nos percebermos como
seres humanos portadores de dignidade e, portanto, sujeitos de direito. E como
se trata de um fenômeno histórico, apesar das muitas mudanças decorrentes de
nossas lutas, meninos e meninas ainda são educados e socializados de maneira
diferenciada, havendo ampla permissão e estímulo para o exercício das vontades
masculinas e muita ameaça e interdição para a realização dos desejos e
necessidades femininas. E é assim que, uma vez adultos, eles e elas se
transformam em homens violentos, agressivos e valentões e em mulheres frágeis,
incapazes e submissas, quando isto já não se manifesta precocemente, na terna
idade. Deste modo, ao vivenciar relações de gênero desiguais e violentas,
vítimas e acusados, já calejados pela ideologia patriarcal, tendem a reproduzir
a visão hegemônica que lhes foi apresentada como natural, segundo a qual “ele”
tem o poder de vida e morte sobre “ela”, e “ela”, mesmo quando tente ou
necessite reagir, deva se sentir culpada e crente de que não deve, pois foi
feita para apanhar e, caso discorde disto, terá que enfrentar todas as
dificuldades que lhe foram impostas ao longo da vida. É neste contexto, que
muitas mulheres também assimilam a cultura patriarcal na qual foram
socializadas e, em face das inúmeras privações e exclusões, nem todas reúnem
condições (psíquicas, sociais e econômicas) de romper, por si só, com o ciclo
da violência de gênero que recai principalmente sobre as mais vulneráveis entre
as vulneráveis, quais sejam, as negras e pobres. Portanto, somente
compreendendo as desigualdades de gênero e suas intersecções, que subjazem à
violência de gênero, seremos capazes de entender e contribuir para a sua
eliminação. Do contrário, tenderemos a ver somente a superfície do fenômeno
(que pouco ou nada nos revela sobre o mesmo) e, de maneira acrítica e
irrefletida, seguir repetindo preconceitos e chavões que sempre responsabilizam
a mulher pela injusta violência da qual ela é vítima. E o pior de tudo, mesmo
sem querer, podemos estar contribuindo para a manutenção do status quo que nem
nós mesmas defendemos. É por estas e outras, que se faz necessário incorporar a
perspectiva de gênero na análise do problema da violência, assim como nos
estudos escolares e acadêmicos de um modo geral, mas, sobretudo (e por ser
demasiado urgente!), na formação dos profissionais do direito, em face dos
quais este problema é diariamente apresentado e onde, muitas vezes, se agrava
ainda mais, afinal, muitos dos grandes juristas deste país, por mais preparados
que sejam, até mesmo em direitos humanos, não conseguem perceber que sem o
respeito à dignidade feminina e sem a devida compreensão e superação da
desigualdade de gênero, não há que se falar em humanidade e muito menos em
direitos universais, mas esta é uma outra importante questão que vou deixar
para uma próxima reflexão. Um beijo no coração de todos e todas! Saudações
feministas e libertárias.
Fonte das fotos: Uol
Fonte das fotos: Uol
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