terça-feira, 18 de março de 2014

A MULHER É CULPADA POR SER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO?


Paquistanesas vítimas de violência domestica. Fotos de Emílio Morenatti



Texto de Salete Maria:
cordelista, professora e advogada.
Paquistanesas vítimas de violência domestica. Fotos de Emílio Morenatti
Salvador-Bahia

Amigas e amigos, foi com bastante preocupação que li, durante esta semana no facebook, alguns comentários sobre violência contra a mulher e a suposta “culpa da vítima” pela ocorrência (ou recorrência) desta inaceitável prática criminosa. Diante disto, menos como docente e advogada e mais como militante feminista e anticapitalista, fiz um breve rabisco sobre a questão e, como neste espaço não é possível desenvolver elucubrações acadêmicas mais aprofundadas (embora eu me disponha a isto onde e quando necessário), desejo apenas lançar alguns “senões” para esquentar e ampliar o debate. De toda sorte, não consegui fazer um rabisco curto, pois o tema é demasiado complexo e requer referências a outras questões correlatas. Mas, se tiverem paciência, por favor leiam, reflitam e questionem o que estou expondo agora, pois é uma modesta contribuição a essa discussão tão importante e tão necessário. Como muita gente sabe, a violência contra as mulheres é um fenômeno presente nas mais distintas sociedades. Trata-se de uma violação aos direitos humanos da parcela feminina do globo e se converteu num dos maiores desafios do milênio para diversas nações. Também sabemos que, a cada dia, os índices deste tipo de violência se tornam cada vez mais alarmantes, vitimando mulheres das mais variadas classes, regiões, raças/etnias, profissões, credos religiosos, etc. Ninguém ignora que são lesões no corpo e na mente das mulheres, além dos estupros e feminicídios perpetrados por homens que, em regra, são ou foram seus namorados, maridos e amantes. É um fenômeno gravíssimo que tem sido estudado com profundidade e interesse por profissionais de diversas áreas, até porque é um problema que somente pode ser compreendido e enfrentado se adotarmos uma postura crítica, interdisciplinar e, sobretudo, feminista da questão. Afinal, a violência contra a mulher é uma violência que emerge (e que se reforça) através da cultura, sendo resultado de uma visão de mundo que acredita e proclama que o homem é o modelo do humano e que este vale mais do que a pessoa do sexo feminino. É uma ideologia que sustenta que o “cabra macho” é o sujeito e a mulher é o objeto das relações sociais. Enfim, decorre do patriarcado, que é um modo de organização da sociedade onde somente o homem detém o poder de decisão sobre todas as coisas e pessoas, gerando uma crença (o sexismo) na superioridade deste com relação ao sexo oposto, isto é, o feminino. Como eu disse, provém de uma ideia (ou convenção social) que vai sendo introjetada na mente das pessoas de distintas classes, raças, sexos e graus de instrução, a ponto destas (sejam analfabetas ou doutoras) sustentarem, em pleno século XXI, que “existem mulheres que merecem ou gostam de apanhar”, dentre outros absurdos. Bom, mas como isto vai passando, de uma geração a outra, como se fosse algo natural (quer dizer, como se fosse da essência do homem mandar, bater e matar, e da essência da mulher apanhar, aceitar e não reagir), criam-se estereótipos de gênero, ou seja, modelos a serem seguidos por homens e mulheres, no que diz respeito a papéis, funções e atitudes. Todavia, a gente que luta, estuda e pensa criticamente sobre isto sabe que não é bem assim, que isto não é natural e muito menos “normal”, pois é fruto de uma “fabricação” social e cultural tão perversa quanto aquela que acredita que pessoas pobres e negras são inferiores a pessoas brancas e ricas. Ou seja, é uma manifestação da articulação entre diversos sistemas de dominação, como racismo/sexismo e capitalismo, dentre outros. E, como todo problema social, tem sido objeto de análise, teorização e intervenção, seja no âmbito psicológico ou das ações políticas e jurídicas transformadoras. Ocorre que esta luta, como disse uma filósofa feminista, “é a revolução mais longa” e, por mais conquistas que tenhamos alcançado, lamentavelmente, ainda temos muito a percorrer, pois além das lutas e demandas junto ao Estado e à sociedade, ainda há a ação de muitas pessoas, dentre elas gente boa do nosso convívio que, por estarem imersas nesta ideologia dominante e não saberem ou quererem criticá-la e superá-la, acabam colaborando com a visão sexista de mundo, dificultando a consolidação dos avanços e a construção de novos direitos para as mulheres. Sabemos que, muitas vezes, as pessoas não se dão conta das tremendas desigualdades ainda existentes entre homens e mulheres e não veem que, ao acha-las natural e ao concordar com certas afirmações, estão reproduzindo, através da mídia ou de outros meios (seja de modo sério ou como piadas e “brincadeiras”) a violência contra as mulheres, dentre as quais muitas se incluem. Aliás, as desigualdades de gênero, que muit@s teimam em não ver, são aquelas que nos privam do acesso aos direitos (notadamente os sexuais e reprodutivos), às oportunidades de trabalho em determinadas áreas, ao poder político, aos bens materiais e imateriais, às possibilidades de, quando competentes, ocuparmos postos e cargos importantes e de sermos bem remuneradas por isto e, até mesmo, as que nos impedem de nos percebermos como seres humanos portadores de dignidade e, portanto, sujeitos de direito. E como se trata de um fenômeno histórico, apesar das muitas mudanças decorrentes de nossas lutas, meninos e meninas ainda são educados e socializados de maneira diferenciada, havendo ampla permissão e estímulo para o exercício das vontades masculinas e muita ameaça e interdição para a realização dos desejos e necessidades femininas. E é assim que, uma vez adultos, eles e elas se transformam em homens violentos, agressivos e valentões e em mulheres frágeis, incapazes e submissas, quando isto já não se manifesta precocemente, na terna idade. Deste modo, ao vivenciar relações de gênero desiguais e violentas, vítimas e acusados, já calejados pela ideologia patriarcal, tendem a reproduzir a visão hegemônica que lhes foi apresentada como natural, segundo a qual “ele” tem o poder de vida e morte sobre “ela”, e “ela”, mesmo quando tente ou necessite reagir, deva se sentir culpada e crente de que não deve, pois foi feita para apanhar e, caso discorde disto, terá que enfrentar todas as dificuldades que lhe foram impostas ao longo da vida. É neste contexto, que muitas mulheres também assimilam a cultura patriarcal na qual foram socializadas e, em face das inúmeras privações e exclusões, nem todas reúnem condições (psíquicas, sociais e econômicas) de romper, por si só, com o ciclo da violência de gênero que recai principalmente sobre as mais vulneráveis entre as vulneráveis, quais sejam, as negras e pobres. Portanto, somente compreendendo as desigualdades de gênero e suas intersecções, que subjazem à violência de gênero, seremos capazes de entender e contribuir para a sua eliminação. Do contrário, tenderemos a ver somente a superfície do fenômeno (que pouco ou nada nos revela sobre o mesmo) e, de maneira acrítica e irrefletida, seguir repetindo preconceitos e chavões que sempre responsabilizam a mulher pela injusta violência da qual ela é vítima. E o pior de tudo, mesmo sem querer, podemos estar contribuindo para a manutenção do status quo que nem nós mesmas defendemos. É por estas e outras, que se faz necessário incorporar a perspectiva de gênero na análise do problema da violência, assim como nos estudos escolares e acadêmicos de um modo geral, mas, sobretudo (e por ser demasiado urgente!), na formação dos profissionais do direito, em face dos quais este problema é diariamente apresentado e onde, muitas vezes, se agrava ainda mais, afinal, muitos dos grandes juristas deste país, por mais preparados que sejam, até mesmo em direitos humanos, não conseguem perceber que sem o respeito à dignidade feminina e sem a devida compreensão e superação da desigualdade de gênero, não há que se falar em humanidade e muito menos em direitos universais, mas esta é uma outra importante questão que vou deixar para uma próxima reflexão. Um beijo no coração de todos e todas! Saudações feministas e libertárias.

Fonte das fotos: Uol

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