Voltando
ao tema; ontem mesmo conversava com uma amiga sobre racismo, privilégios e
consciência racial. Roberta defendia o ponto de vista de que muitxs Negxs não
se reconhecem como tal, e que usa uma tática, que segundo ela, funciona
perfeitamente para suscitar o despertar para a consciência racial. Ela me falou
que sempre que encontra alguém que não tem essa consciência sugere um exercício,
“quer saber se você é negrx? É só você entrar num shopping ou loja chique. Se
você for seguidx pelos seguranças e observada pelos clientes e vendedores você
é negrx”. De uma forma bem simples Roberta tentava demonstrar a dimensão do
racismo e estabelecer um link para consciência racial e toda a opressão que
advém dele. Era também a partir dessa reflexão que ela colocava que não há como
ser negrx e não sofrer racismo. Mas enfim, esse também não é o foco da
discussão.
Mas
como eu falava, lá no comecinho da conversa, pela primeira vez (pelo menos que
eu me lembre) senti na pele o que é ter alguém a me olhar como se eu estivesse
preste a realizar um furto, assalto, um crime ou o equivalente. Estava na sala
de espera de um consultório oftalmológico (estou com uma alergia que tem feito
minhas pálpebras incharem – suspeito que por conta da maquiagem – pelo menos
esse foi o diagnostico) quando uma senhora negra sentou ao meu lado com sua
filha – pele um pouco mais clara que a dela – de cinco anos (o motivo da
exposição sobre o tom de pele de ambas ficará mais claro adiante). A garotinha
havia ferido o olho durante uma brincadeira. Eu e sua mãe ficamos conversando,
eu falando pra ela que não tinha filhos, mas que meu marido gostaria muito de
ser pai, explicava pra ela que nunca foi meu sonho ser mãe, mas que ultimamente
estava considerando a possibilidade, não com muito entusiasmo é claro. Ela me falava
sobre a maravilha de ser mãe, da dificuldade que foi engravidar (por causa dos
ovários policísticos), dos cuidados que dispensava a filha, já que não poderia
ter outra por conta da idade avançada, que já ia fazer 40 anos (quase ri com
essa declaração, mais à frente você entenderá o porquê). Era uma senhora bem humilde,
mas com um apego muito grande com a filha (tanto que fazia o maior esforço para
pagar o plano de saúde da criança) me contava da dificuldade que teve em chegar
com a filha até a clínica, que inclusive teve de pegar um taxi do último
hospital até o oftalmo. Então a perguntei onde ela morava, e pra minha
surpresa, morava perto da minha casa. De pronto a ofereci carona. Continuamos
conversando até que fomos atendidas e liberadas pra voltarmos pra casa.
Quando
chegamos ao carro percebi que não tinha cadeirinha pra conduzir a garota. Então
me senti um pouco desconfortável por ter oferecido carona e não ter como
conduzir as duas. Fiquei temerosa de ser parada numa blitz e ter de pagar multa.
Mesmo com receio acabei dando a carona, afinal era horário de pico e talvez não
pegássemos uma. Depois que estava no banco de trás com a filha e de termos
avançado um pouco na viagem, depois de termos conversado um pouco – durante
essa conversa devo ter falado algo que a deixou insegura – essa senhora começou
a me perguntar que caminho era aquele e por onde eu estava indo, que rua
estávamos, disse, inclusive, que se visse um ônibus que fosse pra casa dela o
pegaria.
Então,
percebi que ela estava desconfiada e com muito medo de mim. Essa senhora deveria
estar achando muito estranho, uma mulher “branca”, “bem vestida”, num “carrão”
dando carona pra uma mulher negra, bem humilde, sem instrução e a tratando
muito bem. Confirmei minhas desconfianças (que ela desconfiava de mim. Risos)
quando ela, sem mais nem menos, me falou que as pessoas perguntavam se a menina
era mesmo filha dela, já que a garota era branquinha e ela negra. Bingo! Ela
achava mesmo que eu ia roubar sua filha. Eu “era branquinha como sua filha”,
não tinha filhos, meu marido queria muito ser pai e eu ainda havia falado para
que já tinha 40 anos. Pronto! Eu não podia ter filhos e a garota passaria por
minha filha numa boa, logo, era a criança ideal. Sem contar que eu cabia
direitinho na descrição de uma das mulheres que roubava crianças lá pelo
interior de Minas Gerais, aquelas duas mulheres simpáticas, loiras, de carro,
que falavam bem...
Fiquei
furiosa, com muita raiva. A vontade que tinha era de mandar aquela mulher sair
do meu carro e se virarem. Ela não parava de me perguntar qual seria nosso
trajeto, que rua era aquela, se aquilo era o aeroporto, de falar que ela sabia
onde estava, que conhecia todas as ruas da cidade, que ninguém a enganava, que
era muito esperta... E eu só queria que ela não me enchesse muito o saco porque
a minha paciência estava bem pouquinha e por mais um pouco eu mandaria ela descer
do carro e deixar a menina (risos), mas era só pra dar um susto mesmo. Por mais
que eu me esforçasse pra deixa-la segura mais ela fazia perguntas e falava coisas
(que eu sabia não fazer o menor sentido, mas que pra ela fazia todo) que
pudessem afastar da minha cabeça a ideia de roubar sua filha e larga-la num
lugar qualquer, onde não pudesse se orientar. Os meus planos era deixar as duas
em casa. Sabe aquele lance de empatia, de se pôr no lugar do outro, me
imaginava na sua situação, com uma criança com a córnea ulcerada, andando pra
cima e pra baixo, ora de ônibus, ora e gastando com taxi. Queria ajuda-la. Mas
me sentia profundamente irritada com aquela desconfiança, apesar de levar em
conta que ela tinha razão de se sentir insegura, afinal, não me conhecia e
ainda por cima eu parecia muito com uma sequestradora de crianças, tipo a
Nazaré Tedesco (da novela), quando foi interpretada pela Carolina Dieckmamn é
claro (Risos).
O que
me deixava literalmente irada da vida era o fato de estar tentando ajudar e
sofrer desconfiança. Acabei as deixando numa farmácia bem perto da minha casa,
onde eu parei pra comprar meu remédio e ela também comprou o da garota, o lugar
era bem melhor para tomarem o ônibus de volta pra casa, ficava há uns dois Km da
sua casa, a mesma distância da minha casa à dela. Ela agradeceu muito a carona
e eu fui embora. Mas enfim, a história me serviu de lição para muitas coisas,
dentre elas;
- Não oferecer carona para desconhecidas (para desconhecidos jamais);
- Que é muito, mas muito desconfortável nos olharem como se estivéssemos prestes a roubar algo
- E a não dizer para uma mãe (desconhecida) que estou à beira de não poder ter mais filhos e que meu marido quer muito ser pai...
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