(Os encoxamentos no transportes público)
Ontem
escrevi um post sobre o, inconveniente e até criminoso, assédio sexual dos
quais somos vítimas em todo e qualquer ambiente em que nós, mulheres e homens,
eventualmente nos encontremos. A sensação que tenho é que a simples expressão
de corpo na sua natureza feminina já pressupõe seu uso público, isso se
apresenta como premissa legítima a partir da experiência que temos quando nos
encontramos em suposta situação de exposição, seja ela em ambiente público ou
privado.
Hoje
vivenciei mais uma situação de constrangimento, não esquecendo é claro que
anteontem também. Estava indo à praia com meu esposo, aproveitando o feriado,
quando ele resolveu parar numa loja de autopeças para comprar uma peça para o
meu carro que pretendia trocar. Eu saio
do carro para acompanha-lo na compra, afinal ele poderia ter alguma dúvida
sobre a peça. Estava de saída de banho e biquíni por baixo. Logo que coloquei o
pé na loja senti uma enxurrada de olhos me acompanharem, dei mais alguns passos
e os olhares indiscretos acabaram por me convencerem a voltar para o carro e
aguardar meu marido ali mesmo.
Anteontem,
o processo foi bem semelhante ao de outro dia, e que também relatei aqui. Ia
até ao supermercado, a 05 quarteirões da minha casa, quando fui surpreendida
por um homem numa bicicleta que se sentiu no direito de balbuciar uma frase ininteligível
para mim e que nem vou me dar ao trabalho de tenta adivinhar seu sentido pra
reproduzi-la. O que importa é que me senti constrangida. Entretanto, por não
ter entendido o que ele falou e por ele ter falado muito baixo, não retruquei.
Quando eles falam em auto e bom som os insultos que acham convenientes e a
gente retruca somos acusadas de sermos loucas, imagina quando só a gente ouve e
mal.
Bem,
apesar de ser um desabafo sobre a inconveniência do assédio na rua, meu relato
serve para demonstrar o quão vulnerável estamos ao assédio sexual, e isso só
considerando a simples “exposição da nossa figura” em ambientes públicos.
Então,
ontem, assistindo o jornal, vejo uma reportagem sobre dois sujeitos que foram
presos em São Paulo, ambos na Estação da Sé, por conta de abuso sexual
novamente no metrô.
“Mulher foi apalpada duas vezes por
engenheiro na Estação Sé. Outra vítima foi filmada por técnico de informática
com celular. Uma das mulheres, vítima de abuso na Estação Sé do Metrô, disse
que gritou apenas ao deixar a composição, nesta quarta-feira (19), informou o
SPTV. Ela relatou que foi apalpada duas vezes por um engenheiro durante o
empurra-empurra na estação. O engenheiro, de 26 anos, negou o abuso, mas como
foi reconhecido pela vítima acabou preso e vai responder por crime de
importunação ofensiva ao pudor. Além dele, um técnico em informática também foi
preso na Estação Sé nesta quarta-feira suspeito pelo mesmo crime. Segundo a
polícia, no celular dele estavam dois vídeos de duas mulheres que ele havia
gravado em um trem. O rapaz disse à polícia que não iria colocar as imagens na
internet. Como o crime de importunação ofensiva ao pudor é considerado de menor
gravidade os dois homens foram liberados. A polícia diz que é importante que as
vítimas procurem a delegacia para dar queixa” G1
“No espaço público, o corpo da
mulher é comparável aos dois corpos do rei (cf. Kantorowicz, 1998): o corpo
privado deve permanecer oculto; o público é exibido, apropriado e carregado de
significação. ‘Uma mulher em público sempre está deslocada’, diz Pitágoras
[...] No palco do teatro, nos muros da cidade, a mulher é o espetáculo do
homem. Muito cedo a publicidade soube combinar sua imagem à do produto elogiado.
Desde 1900, Mucha associa o automóvel ou os Petits Beurres LU (famosa marca de
biscoitos) ao encanto da mulher. Saborear o biscoito é saborear a mulher. Ainda
hoje, o corpo feminino, silencioso e dissecado, continua sendo o principal
suporte da publicidade”. Michelle Perrot em “Os silêncios do
corpo da mulher”.
Assim
sendo, sob a perspectiva masculina machista, o seu objeto de desejo (corpo
feminino) está na rua ao alcance da mão, pronto pra uso. Então, se está ao
alcance da mão e adquire essa dimensão de público, pressupõe como de público
usufruto. Essa é uma das lógicas do machismo que deriva da cultura da
exacerbação da masculinidade através do incentivo a masturbação e a iniciação
sexual precoces, da cobrança do “não negar fogo”, ou seja, de uma virilidade
extrema, da negação da sensibilidade masculina e todas as outras construções
sexistas que alimentam a ideia de que a sexualidade deve exercida contra todo e
qualquer limite e regra social. Pressupondo que a libido masculina deva ser
exercida irrestritamente então “se tornam legítimos” o assédio sexual na rua,
os encoxamentos nos transportes públicos e os estupros. É no mínimo preocupante que as mulheres ainda
tenham seus corpos violados com conivência de uma cultura arbitrária que não
entende o conceito de pessoalidade e de inviolabilidade.
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