quinta-feira, 20 de março de 2014

Público usufruto do corpo feminino



 (Os encoxamentos no transportes público)

Ontem escrevi um post sobre o, inconveniente e até criminoso, assédio sexual dos quais somos vítimas em todo e qualquer ambiente em que nós, mulheres e homens, eventualmente nos encontremos. A sensação que tenho é que a simples expressão de corpo na sua natureza feminina já pressupõe seu uso público, isso se apresenta como premissa legítima a partir da experiência que temos quando nos encontramos em suposta situação de exposição, seja ela em ambiente público ou privado. 

Hoje vivenciei mais uma situação de constrangimento, não esquecendo é claro que anteontem também. Estava indo à praia com meu esposo, aproveitando o feriado, quando ele resolveu parar numa loja de autopeças para comprar uma peça para o meu carro  que pretendia trocar. Eu saio do carro para acompanha-lo na compra, afinal ele poderia ter alguma dúvida sobre a peça. Estava de saída de banho e biquíni por baixo. Logo que coloquei o pé na loja senti uma enxurrada de olhos me acompanharem, dei mais alguns passos e os olhares indiscretos acabaram por me convencerem a voltar para o carro e aguardar meu marido ali mesmo.

Anteontem, o processo foi bem semelhante ao de outro dia, e que também relatei aqui. Ia até ao supermercado, a 05 quarteirões da minha casa, quando fui surpreendida por um homem numa bicicleta que se sentiu no direito de balbuciar uma frase ininteligível para mim e que nem vou me dar ao trabalho de tenta adivinhar seu sentido pra reproduzi-la. O que importa é que me senti constrangida. Entretanto, por não ter entendido o que ele falou e por ele ter falado muito baixo, não retruquei. Quando eles falam em auto e bom som os insultos que acham convenientes e a gente retruca somos acusadas de sermos loucas, imagina quando só a gente ouve e mal.
Bem, apesar de ser um desabafo sobre a inconveniência do assédio na rua, meu relato serve para demonstrar o quão vulnerável estamos ao assédio sexual, e isso só considerando a simples “exposição da nossa figura” em ambientes públicos. 

Então, ontem, assistindo o jornal, vejo uma reportagem sobre dois sujeitos que foram presos em São Paulo, ambos na Estação da Sé, por conta de abuso sexual novamente no metrô. 

Mulher foi apalpada duas vezes por engenheiro na Estação Sé. Outra vítima foi filmada por técnico de informática com celular. Uma das mulheres, vítima de abuso na Estação Sé do Metrô, disse que gritou apenas ao deixar a composição, nesta quarta-feira (19), informou o SPTV. Ela relatou que foi apalpada duas vezes por um engenheiro durante o empurra-empurra na estação. O engenheiro, de 26 anos, negou o abuso, mas como foi reconhecido pela vítima acabou preso e vai responder por crime de importunação ofensiva ao pudor. Além dele, um técnico em informática também foi preso na Estação Sé nesta quarta-feira suspeito pelo mesmo crime. Segundo a polícia, no celular dele estavam dois vídeos de duas mulheres que ele havia gravado em um trem. O rapaz disse à polícia que não iria colocar as imagens na internet. Como o crime de importunação ofensiva ao pudor é considerado de menor gravidade os dois homens foram liberados. A polícia diz que é importante que as vítimas procurem a delegacia para dar queixa” G1 

No espaço público, o corpo da mulher é comparável aos dois corpos do rei (cf. Kantorowicz, 1998): o corpo privado deve permanecer oculto; o público é exibido, apropriado e carregado de significação. ‘Uma mulher em público sempre está deslocada’, diz Pitágoras [...] No palco do teatro, nos muros da cidade, a mulher é o espetáculo do homem. Muito cedo a publicidade soube combinar sua imagem à do produto elogiado. Desde 1900, Mucha associa o automóvel ou os Petits Beurres LU (famosa marca de biscoitos) ao encanto da mulher. Saborear o biscoito é saborear a mulher. Ainda hoje, o corpo feminino, silencioso e dissecado, continua sendo o principal suporte da publicidade”. Michelle Perrot em “Os silêncios do corpo da mulher”.










Assim sendo, sob a perspectiva masculina machista, o seu objeto de desejo (corpo feminino) está na rua ao alcance da mão, pronto pra uso. Então, se está ao alcance da mão e adquire essa dimensão de público, pressupõe como de público usufruto. Essa é uma das lógicas do machismo que deriva da cultura da exacerbação da masculinidade através do incentivo a masturbação e a iniciação sexual precoces, da cobrança do “não negar fogo”, ou seja, de uma virilidade extrema, da negação da sensibilidade masculina e todas as outras construções sexistas que alimentam a ideia de que a sexualidade deve exercida contra todo e qualquer limite e regra social. Pressupondo que a libido masculina deva ser exercida irrestritamente então “se tornam legítimos” o assédio sexual na rua, os encoxamentos nos transportes públicos e os estupros.  É no mínimo preocupante que as mulheres ainda tenham seus corpos violados com conivência de uma cultura arbitrária que não entende o conceito de pessoalidade e de inviolabilidade.





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