quinta-feira, 1 de maio de 2014

Quase bicho, quase coisa, feia e fedorenta.



Há algum tempo resolvi escrever sobre certos episódios que me causaram profundo constrangimento e, desde então, venho deliberadamente protelando. Afinal, como disse, são relatos constrangedores. Um deles, o qual devo ter comentado somente uma ou duas vezes em mais 30 anos, é sobre quando descobri que fedia. Isso mesmo, eu fedia. Acho que finalmente chegou a hora de quebrar o silêncio e relatar o, que somente há pouco descobri ser, um abuso. Apesar de saber que fui abusada, e que não escolhi passar por aquilo, ainda continuo sentindo uma enorme vergonha, o que tenho plena consciência não ser saudável. Talvez depois dessa exposição consiga me livrar desse sentimento.
Quando eu tinha entre 9 e 10 anos, o filho da vizinha (que tinha a mesma idade) chegou por trás, enquanto eu estava encostada numa parede que dividia a sala e a cozinha de sua casa, enfiou as mãos por entre a minha saia e passou os dedos entre a minha calcinha, o ânus e as nádegas. Em seguida ele cheirou os dedos e disse “puta que pariu, que porra fedorenta, vai cair os meus dedos. Tu não toma banho não miserave?”. É claro que eu meti a mão na cara dele e o mandei ir se fuder.
 
Só que não! Era o mínimo que deveria ter feito, mas não fiz. Pelo contrário, quase pedi desculpas pra ele por meu ânus ser fedorento.  Quase fui pra casa me lavar pra que meu ânus não permanecesse fedorento. Aliais, queira não ter ânus, assim não teria como feder, pelo menos naquela região não. Entretanto, o constrangimento foi tão grande que não consegui esboçar reação. Fiquei plantada no mesmo lugar sem me mexer feito um ás de paus, imóvel, gélida, inerte. Quando percebi que ninguém mais me observava corri pra casa, me sentindo fedorenta e a pior pessoa do mundo por ter deixado as mãos do garoto classe média fedendo a cú.
Quando cheguei em casa tive vontade de morrer. A vergonha era tamanha que não sai de casa durante vários dias. Ir à casa dessa vizinha nem pensar! Foram dias encerrada em casa sem conseguir tirar da cabeça o meu cú fedorento. Ainda hoje tenho muita vergonha do cheiro da minha buceta e do meu cú. Sem dúvidas que lido bem melhor com isso agora. Mas não deixa de ser um problema pra mim.

Bem, mas deixa eu explicar porque me senti tão constrangida por causar aquele “aborrecimento” ao rapazote, quase branco, classe média; Durante a infância, e parte da adolescência, fui obrigada a ser a submissão em pessoa. Eu morava com meus avós numa casa de três cômodos, numa vila, a gente mal tinha o que comer, mal mesmo. Comíamos basicamente feijão, refugo de carne (as sobras de limpeza de carne) e farinha, somente isso. Quando sobrava dinheiro meu pai comprava carne com osso para fazer um cozido que cachorro apanhava pra comer. Se não tínhamos dinheiro pra comprar comida, imagina pra brinquedos e roupas. Por isso vivia nas casas da vizinhança fazendo uma espécie de mendicância silenciosa. Não pedia nada verbalmente, embora meus olhos dissessem tudo. Meus avós me ensinaram a não ser pidona, apesar de dizerem que “era melhor pedir que roubar”. 

Os filhos dos vizinhos, que eram classe média, tinham muitos brinquedos, inclusive bicicletas, e a mãe deles, ou empregadas, cozinhavam muito bem. A comida sem dúvidas era um dos principais atrativos e que me levava a passar a maior parte do tempo nas “casas alheias”. Mas não posso deixar de pontuar que odiava ficar em casa por conta das frequentes surras que levava, por causa da fumaça do fogo a lenha usado para cozinhar o feijão boiando na agua e sal, e o cheiro de fumo de rolo misturado com cachaça que exalava da minha avó.
Mas, pra que eu ficasse tanto tempo pela vizinhança algumas regras eu teria de seguir, tais como não “responder” (falar de forma hostil) aos adultos, não “pegar no que é dos outros” (não roubar) e não bater nos filhos dos vizinhos e obedecer as ordens de seus pais, caso contrário eles poderiam me bater (com a devida autorização da minha avó é claro). E caso eu chegasse em casa com alguma reclamação a culpa seria minha por não estar em casa, passar o dia na rua e ainda apanhava por conta disso. Então, por mais que fosse humilhada na rua, ou qualquer outra coisa, eu nunca reclamava de absolutamente nada.
Compreendi cedo, que enquanto mulher pobre e quase negra, eu não deveria reagir. Deveria sempre baixar a cabeça e engolir o choro se quisesse manter as portas abertas para mais um prato de arroz, feijão, salada de maionese, frango e suco ou pra uma volta de bicicleta ou talvez pra uma partida de videogame. Sem contrariedades, eu sempre chegava na casa dos pais das minhas coleguinhas sorrateiramente, com olhos de cachorro que caiu da mudança, na hora das refeições e ficava até que fosse enxotada da casa ou que minha avó chegasse com um cipó gritando o meu nome a plena voz.

Naturalmente, não reagi na ocasião como levei muito tempo a reagir às violações ao meu corpo, porque achava legítimo que fosse tratada como coisa. Deveria agradar pra não ser descartada. Entendia que era inferior, não só aos homens e aos adultos, mas a todas as pessoas brancas ou quase brancas e que tivessem um pouco mais que eu. Era coisa, era um cão, que deveria lamber os pés para que não fosse afugentado. Era um bicho sem alma, sem vontade, faminto, quase despido, dependente da caridade daquelas pessoas e completamente acuado de tanto medo.
Eu era tantas meninas, de ontem e de hoje, que jogada à margem da sociedade não encontra em si o significado de gente e permanece coisa que pode ser usada enquanto objeto sexual, sacos de pancadas e incubadora de tantas outras meninas que serão vítimas do mesmo destino. Meninas negras ou quase negras que não têm a prerrogativa de reivindicar pra si o direito sobre o próprio corpo, que entendem como legítimos os estupros, os espancamentos, os partos de gestações indesejáveis. Mulheres e meninas esmagadas pela opressão machista e racistas dessa sociedade. Quase bicho, quase coisa, feias e fedorentas. Porém, úteis conforme a conveniência.

10 comentários:

NOS SOMOS O CAMPO disse...

o que seria quase negra? não entendi

Unknown disse...

E o quase branco não conta?

Luiza Pinaud disse...

Adorei o texto, Ana! Parabéns!!

Amei o final: Meninas negras ou quase negras que não têm a prerrogativa de reivindicar pra si o direito sobre o próprio corpo, que entendem como legítimos os estupros, os espancamentos, os partos de gestações indesejáveis. Mulheres e meninas esmagadas pela opressão machista e racistas dessa sociedade. Quase bicho, quase coisa, feias e fedorentas. Porém, úteis conforme a conveniência.

bj,

Luiza

Unknown disse...

Apesar de ter sido muito doloroso escrevê-lo e a exposição advinda desse relato, foi necessário tanto como catarse como uma forma de denúncia do nível de cosificação das meninas pobres. Obrigada Luiza.

Ana Luíza disse...

Seu texto me tocou! Mulher, você é guerreira!

Taiana disse...

lindo o texto!Adorei cada vírgula e me senti triste. Triste por haver tantas meninas que sofrem disso nesse Brasil. Tive sorte por ter nascido privilegiada. Muita sorte...

Anónimo disse...

Só menina passa por isso?
Moleque pobre não passa?
O que vc chama de opressão racista é, na verdade, diferença de classe.
Lembro de como meus amiguinhos pobrezinhos eram submissos, coitados, miseráveis.
Fossem brancos, negros, mulatos ou loiros, os pobres sempre têm essa humilhação estampada na cara.
Abuso?
A quantidade de relatos que eu sei de moleques que tinham que dar o cu ou fazer uma chupeta para outros moleques (inclusive com meninas assistindo, porque pobre que é pobre precisa dar espetáculo de sua pobreza) a fim de ganhar um petisco, um doce ou qualquer outra coisa, seria assustador.
Então, que não me venha mais uma feministazinha ficar choramingando que foi uma vítima da opressão machista.
Foi uma vítima da opressão social, esta que divide o mundo em ricos e pobres desde que o ser humano existe sobre a face da terra.

Luiza Pinaud disse...

Só porque você sofre não existe motivo para diminuir o sofrimento do outro. Cada pessoa sofre de um jeito.
Não perca tempo escrevendo essas besteiras. E seja um adulto e assuma as suas opiniões e escreva seu nome em vez de "anônimo"

Anónimo disse...

Excelente texto! Parabéns pela bravura de estampar e de conseguir exteriorizar isso. Infelizmente sempre existirão bossais querendo colocar tudo em uma mesma bolha. Sempre terá alguém que não aceita a individualização do sofrimento. É por causa deles que o machismo é perpetuado. Não se deixe atingir pelos propagadores da injustiça, afinal você é forte. Continue Escrevendo Ana!

Taynah Quirino disse...

Sister, esse texto me tocou muito, me emocionei.
Você é muito corajosa

Que abuso esse anônimo, hein ¬¬
Ninguém disse que meninos negros não sofrem, gente, peloamordedeus