sexta-feira, 18 de abril de 2014

Quando eu nasci veio um anjo safado...




 
Parafraseando Chico, “quando nasci veio um anjo safado, um chato dum querubim, e decretou que eu estava predestinado a ser todo ruim. Já de entrada minha estrada entortou...” e eu cheguei ao mundo pesando três quilos e seiscentos gramas e com cinquenta centímetros. 

Quando vi a luz pela primeira vez achei que havia morrido, aqui fora estava muito frio, ouvia zumbidos, avistava por entre as frestas dos olhos semicerrados imagens distorcidas. Não pensei duas vezes, estou morta. Primeiro eu vi um corredor bem longo e escuro, depois apareceu àquela luz que se aproximava sorrateiramente. Até que veio o frio e as imagens distorcidas. Morri, e eu que teria tanta coisa pra viver. Um abraço da minha mãe para receber, carinhos nos pés e mãos, afagos na cabeça. Eu ainda nem havia aprendido a andar de bicicleta. E os bombons de chocolates? Não havia experimentado nenhum, e nem papinha de Mucilon ou Cremogema. Não poderia gozar das cócegas no suvaco ou na barriga. Caraca! O meu primeiro beijo, não poderia degustar o friozinho na barriga e tontura causadas por essa emoção. 
Porem, antes de chegar ao final da lista de coisas que lamentaria não poder experimentar, fui sacudida pelos pés e recebi um tabefe na bunda. Tentei falar alguma coisa mais a voz não veio. Levei então mais um tapa e me coloquei a xingar o escroto que me espancou. Avisei logo que não se atrevesse de forma alguma a tocar em nem mais um fio de cabelo meu, se não o bicho ia pegar. Que indivíduo mais folgado. A sorte dele foi que naquele tempo ainda não havia telefone celular, se não teria chamado a polícia e ele teria tido que se explicar com a justiça. De qualquer forma, não iria tolerar abuso de quem quer que fosse, muito menos de um sádico magrela quatro olhos e ainda por cima trajando uma vestidinho branco com um colarzinho preto mequetrefe. Foi então que rasguei o verbo. 

Apesar da dificuldade de nos entendermos, a linguagem usada era ininteligível, o recado foi dado e ele cessou com o espancamento. Não posso negar que continuo não concordando muito com essa mania de nos recepcionarem na base do espancamento. Nem sequer “um bom dia”, um “como vai?”, o sujeito chega dessa viagem enfadonha e já tem de tomar uma chibatada na bunda. Não é só porque se pode pendurar o indivíduo pelos pés que é lícito espanca-lo.
 
Eu já estava perdendo a paciência de ficar de ponta cabeça quando avisei que deveriam me colocar de pé imediatamente. E imagine só, sentia que estava perdendo os sentidos, não conseguia raciocinar sobre mais nada, meu sangue havia vindo parar todo na cabeça, e já sentia formigões pelos pés e mãos quando finalmente me colocaram numa posição confortável. Enfim, eu começava a gostar dessa coisa de nascer. Senti coceguinhas nos pés e pescoço, era a enfermeira limpando uma gosma fedorenta que me cobria. 
Em seguida ela me vestiu uma roupinha bem cheirosinha e me levou pra os braços da minha mãe. Eu sabia que seria ela não pelo seu rosto, que me pareceu bem estranho, mas pela sua temperatura e voz. Ela me apertou contra o peito e me acariciou o rosto, eu tentei retribuir o carinho com afagos e um sorriso. Naturalmente, por mais que tentasse, não conseguia coordenar os movimentos dos braços e mãos. Limitei-me a fazer bocejos e mexer efusivamente braços e pernas.
 
Mas, como tudo que é bom dura pouco, não demorou muito pra eu perceber que Deus deveria estar numa vibe muito bem humorada na ocasião da escolha do meu anjo da guarda e deve ter achado muito engraçado nomear um grandíssimo filho de uma puta pra me fazer companhia. Essa foi uma, das suas grandes piadas, que realmente me tirou do sério. Ter um querubim velhaco por companhia não me agradou nem um pouco. 
No entanto, era irremediável, meu destino estava selado, teria indefinidamente em meu encalço um anjo pra lá de cínico, um desocupado, um tremendo gozador e sem nada mais interessante a fazer na vida do que atormentar a existência dessa pessoa que agora mergulha em si mesmo. Enquanto eu passava pelos maiores perrengues da minha vida, se eu olhasse pra cima, até poderia ver um anjo moleque de ponta cabeça olhando de soslaio e a sorrir, ou a gargalhar (de segurar a barriga com as mãos) das minhas aflições. E quiçá, ele não fosse o mentor das armações das quais eu fora vítima. 
Vivia perdendo os chinelos e apanhando por conta disso. Acho que assim que eu tirava as sandálias o querubim Tonto às pegava e as escondia. Tonto me empurrava da bicicleta, da árvore, na poça d’água, colocava pregos por onde eu iria passar, rasgava e quebrava as coisas, sussurrava mentiras através da minha boca. Tornava minha vida um tormento. Tonto não era só gozador, era também sádico, estimulava minha avó e meus amigos a me espancarem e com certeza deveria achar tudo isso uma delícia. 
Ignorando a existência de um querubim malandro em minha vida eu até poderia pensar que metia em problemas porque nasci com dom pra fazer besteiras, mas pode ser que passei a fazer bobagens por conta do estigma que minha família lançou sobre mim. Meus avós e tios achavam que era uma maquina de fazer bobagens. E só me restou imaginar que estaria predestinada a “ser toda ruim”, e pasmem, eu era estimulada a pensar isso, eu era uma garota problema e ponto final, era uma “garota interrompida”. 
Minha avó costumava dizer que era teimosa, danada e enxerida, ou como preferia chamar, “maluvida”. E, portanto eu não iria prestar de jeito nenhum... Como a minha avó encabeçou o coro de que não prestava e isto e aquilo, daí a pouco os outros membros da família e vizinhos compraram a ideia e começaram também a repetir as mesmíssimas sentenças. E o que fazer? Era tarde, minha fama se espalhou e estava acima da minha vontade, mesmo que suprema, subverter esse cenário. Fui condenada e culpada até mesmo por aquilo que desconhecia ter havido. 
Era fato, minha fama de imprestável estava consolidada, nada mais poderia ser feito quanto a isso. Pensava que chegaria aos meus últimos minutos de vida como um ente inútil, imprestável e problemática. É claro que depois de anos ouvindo essas acusações me acostumei com cada uma delas. Confesso que chegou o momento em que não alimentava interesse algum em reverter a má imagem que faziam de mim. E o pior, passei a gostar de ser problemática. 
E foi sob esse estigma que consolidei minha personalidade. Sem compromisso, cobranças ou obrigação de dar certo, sem rumo predeterminado, sem expectativas e metas a cumprir. E o que eu fiz? Fiz e fui quem eu quis, paguei pessoalmente o preço de cada escolha errada e tive de compartilhar os louros de muitos dos meus acertos, porque a vida é assim mesmo, o ônus cada um que pague pelo seu mas o bônus cabe a todos.


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