sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Homens trans engravida e pari uma menina


Essa semana rodou nas redes sociais a notícia, publicada na Folha de São Paulo, sobre o transexual Alexis Taborda, 27, como o primeiro homem a dar à luz na Argentina. Alexis nasceu sob o sexo feminino e há seis anos fazia tratamento para assumir características masculinas. Ele é casado oficialmente com a também transexual Karen Bruselario, que nasceu sob o sexo masculino. O rapaz que não estava tomando hormônios masculinos resolveu aceitar o desafio de engravidar, a gravidez foi possível porque ambos haviam mantido os órgãos sexuais naturais. Há um mês nasceu Gênesis Evangelina, filha biológica do casal.  
O depoimento de Alexis é comovente 

“Desde os seis anos eu sabia que era transexual. Queria fazer xixi em pé, jogar futebol, me vestir como homem. Com 19 anos eu assumi minha nova identidade. Não revelo meu nome antigo porque isso é voltar ao passado, e minha história já é outra. Eu e a Karen estamos juntos há quatro anos e queríamos ter um filho. Se adotar uma criança na Argentina é difícil para um casal hétero, imagine para um casal transexual. Como esse era o sonho da vida dela, aproveitei que eu não estava tomando hormônios para fazer um check-up e ver se eu podia engravidar. O médico disse que sim. Para mim, foi muito complicado psicologicamente voltar a menstruar, já que nos últimos seis anos tomei hormônios para isso não acontecer. Eu já tinha uma figura total de homem e deixar o tratamento de lado foi traumático. Meus peitos voltaram a crescer, e agora não vejo a hora de conseguir fazer uma cirurgia para tirá-los. Minha companheira me ajudou muito. Ela me dizia o tempo todo que eu continuava sendo homem que nada tinha mudado, e que seriam só nove meses. Durante a gravidez, só senti que estava grávido quando minha filha chutava. Nos outros momentos, era como se não fosse comigo. A Karen vivia pedindo para eu tomar cuidado com a barriga, porque realmente eu não me tocava que era comigo. Na hora do parto, escolhi cesárea. Quando a Gênesis nasceu, combinamos com a enfermeira que a primeira pessoa a ter contato com ela seria a mãe, e assim foi feito. Mas precisamos da ajuda de um advogado porque o hospital queria colocar ‘senhora Alexis’ na ata hospitalar do nascimento da minha filha. Como eu tenho minha identidade reconhecida pela Lei de Igualdade de Gêneros, eles foram obrigados a colocar no registro ‘senhor’. Escondemos a gravidez até os cinco meses, porque moramos em Victoria [a 371 km de Buenos Aires], uma cidade muito pequena, com pessoas muito conservadoras. Ficamos com medo. Chegamos a ouvir coisas horrorosas como ‘vocês dão nojo’, ‘pobre dessa criança’. Mas não nos abalamos. Agora, não deixarei ninguém falar mal da minha filha. Estamos desempregados. Fiz curso técnico de administração hospitalar, mas aqui ninguém nos dá emprego. Dividimos um apartamento com uma amiga e recebemos doações de amigos e familiares. Até o fim da gravidez, vendíamos empanadas e tortas na rua. A Karen, que já tinha se prostituído, voltou à rua. Mas isso me fazia muito mal e há seis meses ela parou. Acho curiosa a fama fora da Argentina. Sempre leio ‘Primeiro homem grávido na Argentina’ na internet. Mas é louco se ver em todos os jornais, sites, se olhar no espelho e falar ‘não tenho trabalho, não tenho como dar sustento à minha família’.” Folha de S. Paulo.

O caso é bem particular e talvez incomum, relutei em aborda-lo pelo fato de se tratar de uma realidade que não vivencio. Entretanto, a partir de um comentário sobre o assunto, uma enxurrada de pensamentos e sentimentos me absorveram, então pensei que poderia compartilha-los com vocês. 

Madeleine disse que Alexis parecia estar completamente dissociativo, como ele próprio revela “Durante a gravidez, só senti que estava grávido quando minha filha chutava. Nos outros momentos, era como se não fosse comigo”. No entanto, em busca de realizar o sonho de sua companheira ele se submeteu ao doloroso processo de gestar, como também de parar com a terapia hormonal que lhe garantia fisicamente a tão aspirada fisionomia masculina. “Desde os seis anos eu sabia que era transexual. Queria fazer xixi em pé, jogar futebol, me vestir como homem. Com 19 anos eu assumi minha nova identidade. Não revelo meu nome antigo porque isso é voltar ao passado, e minha história já é outra.” Sob essa perspectiva é possível vislumbrar uma situação de extrema violência e opressão, impor a um homem a gestação é violenta-lo. Femininiza-lo com a gravidez e impedi-lo de continuar com a terapia que lhe garante a identidade sob a qual se reconhece é oprimi-lo ao nível de tortura, visto que ele prefere apagar da memória sua identidade feminina. 

É possível percebe sua inquietação e é nítido seu desconforto com a situação, ele declara que só se sentia grávido quando a menina chutava, além disso, ele precisava constantemente ser confortado por sua companheira, ouvi-la dizer que eram somente noves meses e que ele, apesar de gestante, continuava homem. Precisamente uma situação de extrema violação do corpo e da alma, um verdadeiro e sistemático estupro. 

Outra questão importante de se observar é como apesar de ser uma pessoa socializada como mulher continua reproduzindo a opressão, como diria Madeleine, “forçando uma "fêmea" a ter seus filhotes contra a vontade? E vice versa?”. A reflexão é bastante pertinente, as relações entre casais héteros estão quase sempre fundamentadas na construção convencional de família, homem, mulher e filhos. E a demonstração de virilidade se processa a partir da capacidade de gerar filhos biológicos. Lamentavelmente, alguns homens encontram uma relação diretamente proporcional entre número de filhos e virilidade, quanto maior uma tanto maior a outra. Estou casada há quase 17 anos e porque ainda não nos décimos por ter filhos já fomos discriminados várias vezes. As ofensas vão desde dizerem que meu marido tem o “ovo goro”, expressão de extremo mal gosto, até dizerem que ele não “faz menino” que precisa “trabalhar menos e assistir menos TV”. Nunca passou pela cabeça dessas pessoas que não ter filhos pode ser uma opção consciente, sem traumas e dramas.

Apesar disso, persiste a ideia de que o homem só se torna homem de verdade depois de se tornar pai. E pra isso ele utiliza de várias artimanhas, muitas delas violentas, pra submeter a fêmea a sua vontade, desde proibi-la de usar anticoncepcionais até ameaça-la de divórcio. Não obstante, as mulheres que não podem gestar são abandonadas pelo marido em troca da amante grávida ou que já lhe deu filho biológico. Só no meu convívio conheço 03 casos. 

Bem, aí eu me pergunto, até que ponto a cultura patriarcal influi numa relação que por si só rompe com esse sistema? É quase impossível chegar a um consenso sobre essa questão. Se por um lado o casal rompe todos os preconceitos numa relação homoafetiva pouco provável, por outro, continua a reproduzir o sistema de opressão características dos casais héteros, a gestação como um ponto fundamental da relação e a imposição de filhos necessariamente biológicos. Entretanto, como negar a qualquer casal o direito de terem seus filhos biológicos, já que isso é possível? Também não se pode excluir o direito que alguém tem de realizar os sonhos do parceiro, afinal, quando luto contra a opressão, significa que seria contra toda e qualquer opressão, inclusive contra a tentativa de negar o direito de alguém de praticar a eutanásia. 

Mas, para além do modelo patriarcal há também as condições objetivas do casal e do meio no qual ele esta inserido. Ficou claro, como bem salientou o Alexis, as sociedades, seja ela brasileira, americana, indiana ou argentina, não evoluiu o suficiente pra perceber que o modelo convencional de família há tempos mudou, e apesar disso, a sociedade argentina e outras continuam impondo barreiras a adoção de de crianças por famílias que destoam do modelo convencial. Além do que, a situação financeira do casal seria mais um entrave caso o casal optasse pela adoção.

Não tenho mais argumentos para justificar o quanto é cruel a opressão contra as pessoas que não seguem os padrões convencionais. No entanto, me sinto bastante confortável para lamentar a situação que envolve esse casal, mais vítima extrema dessa sociedade castradora do que protagonista de suas próprias vidas. Alexis sequer teve respeitado o direito de ser reconhecido como homem, como também de exercer sua profissão por conta do preconceito. Lamento que as condições objetivas levem Karen, ou outra mulher qualquer, a recorrer à prostituição como meio de garantir sua subsistência e de sua família.   





2 comentários:

Unknown disse...

soU UM HOMEM TRANS E SEI O QUANTO É HORROSA A IDEIA DE SER PAI BIOLÓGICO NESSA SOCIEDADE, NÃO PELO FATO DE GESTAR É PELO PRECONCEITO E PELA SUBVERSÃO DA NOSSA IDENTIDADE DE GÊNERO, ORA, SE QUISESSE PARIR QUE CONTINUASSE MULHER?! É ASSIM QUE FALAM DE NÓS, NOS OLHAM DIFERENTES O TEMPO TODO, NÃO RESPEITAM NOSSO CORPO E PARTICULARIDADES...EU ESTOU CADA VEZ MAIS DECEPCIONADO COM A SOCIEDADE, MAS, NÃO DEIO NINGUÉM PASSAR POR CIMA DOS MEUS DIREITOS...OTIMO TEXTO...

Unknown disse...

Ótimo texto. Sensacional mesmo. Só tenho uma pequena observação: "numa relação homoafetiva". Eles não tem uma relação homo, e sim hetero, já que são um homem e uma mulher.