Essa
semana rodou nas redes sociais a notícia, publicada na Folha de São Paulo,
sobre o transexual Alexis Taborda, 27, como o primeiro homem a dar à luz na
Argentina. Alexis nasceu sob o sexo feminino e há seis anos fazia tratamento
para assumir características masculinas. Ele é casado oficialmente com a também
transexual Karen Bruselario, que nasceu sob o sexo masculino. O rapaz que não
estava tomando hormônios masculinos resolveu aceitar o desafio de engravidar, a
gravidez foi possível porque ambos haviam mantido os órgãos sexuais naturais.
Há um mês nasceu Gênesis Evangelina, filha biológica do casal.
O
depoimento de Alexis é comovente
“Desde os seis anos eu
sabia que era transexual. Queria fazer xixi em pé, jogar futebol, me vestir
como homem. Com 19 anos eu assumi minha nova identidade. Não revelo meu nome
antigo porque isso é voltar ao passado, e minha história já é outra. Eu e a
Karen estamos juntos há quatro anos e queríamos ter um filho. Se adotar uma
criança na Argentina é difícil para um casal hétero, imagine para um casal
transexual. Como esse era o sonho da vida dela, aproveitei que eu não estava
tomando hormônios para fazer um check-up e ver se eu podia engravidar. O médico
disse que sim. Para mim, foi muito complicado psicologicamente voltar a
menstruar, já que nos últimos seis anos tomei hormônios para isso não
acontecer. Eu já tinha uma figura total de homem e deixar o tratamento de lado
foi traumático. Meus peitos voltaram a crescer, e agora não vejo a hora de
conseguir fazer uma cirurgia para tirá-los. Minha companheira me ajudou muito.
Ela me dizia o tempo todo que eu continuava sendo homem que nada tinha mudado,
e que seriam só nove meses. Durante a gravidez, só
senti que estava grávido quando minha filha chutava. Nos outros momentos, era
como se não fosse comigo. A Karen vivia pedindo para eu tomar cuidado com a
barriga, porque realmente eu não me tocava que era comigo. Na hora do parto,
escolhi cesárea. Quando a Gênesis nasceu, combinamos com a enfermeira que a
primeira pessoa a ter contato com ela seria a mãe, e assim foi feito. Mas
precisamos da ajuda de um advogado porque o hospital queria colocar ‘senhora
Alexis’ na ata hospitalar do nascimento da minha filha. Como eu tenho minha
identidade reconhecida pela Lei de Igualdade de Gêneros, eles foram obrigados a
colocar no registro ‘senhor’. Escondemos a gravidez até os cinco meses, porque
moramos em Victoria [a 371 km de Buenos Aires], uma cidade muito pequena, com
pessoas muito conservadoras. Ficamos com medo. Chegamos a ouvir coisas horrorosas
como ‘vocês dão nojo’, ‘pobre dessa criança’. Mas não nos abalamos. Agora, não
deixarei ninguém falar mal da minha filha. Estamos desempregados. Fiz curso
técnico de administração hospitalar, mas aqui ninguém nos dá emprego. Dividimos
um apartamento com uma amiga e recebemos doações de amigos e familiares. Até o
fim da gravidez, vendíamos empanadas e tortas na rua. A Karen, que já tinha se
prostituído, voltou à rua. Mas isso me fazia muito mal e há seis meses ela
parou. Acho curiosa a fama fora da Argentina. Sempre leio ‘Primeiro homem
grávido na Argentina’ na internet. Mas é louco se ver em todos os jornais, sites,
se olhar no espelho e falar ‘não tenho trabalho, não tenho como dar sustento à
minha família’.” Folha de S. Paulo.
O
caso é bem particular e talvez incomum, relutei em aborda-lo pelo fato de se
tratar de uma realidade que não vivencio. Entretanto, a partir de um comentário
sobre o assunto, uma enxurrada de pensamentos e sentimentos me absorveram, então
pensei que poderia compartilha-los com vocês.
Madeleine
disse que Alexis parecia estar completamente dissociativo, como ele próprio
revela “Durante a gravidez, só senti que estava grávido quando minha filha
chutava. Nos outros momentos, era como se não fosse comigo”. No
entanto, em busca de realizar o sonho de sua companheira ele se submeteu ao
doloroso processo de gestar, como também de parar com a terapia hormonal que lhe
garantia fisicamente a tão aspirada fisionomia masculina. “Desde os seis anos
eu sabia que era transexual. Queria fazer xixi em pé, jogar futebol, me vestir
como homem. Com 19 anos eu assumi minha nova identidade. Não revelo meu nome
antigo porque isso é voltar ao passado, e minha história já é outra.” Sob essa
perspectiva é possível vislumbrar uma situação de extrema violência e opressão,
impor a um homem a gestação é violenta-lo. Femininiza-lo com a gravidez e impedi-lo
de continuar com a terapia que lhe garante a identidade sob a qual se reconhece
é oprimi-lo ao nível de tortura, visto que ele prefere apagar da memória sua
identidade feminina.
É possível
percebe sua inquietação e é nítido seu desconforto com a situação, ele declara que só se
sentia grávido quando a menina chutava, além disso, ele precisava
constantemente ser confortado por sua companheira, ouvi-la dizer que eram
somente noves meses e que ele, apesar de gestante, continuava homem. Precisamente
uma situação de extrema violação do corpo e da alma, um verdadeiro e
sistemático estupro.
Outra
questão importante de se observar é como apesar de ser uma pessoa socializada
como mulher continua reproduzindo a opressão, como diria Madeleine, “forçando uma
"fêmea" a ter seus filhotes contra a vontade? E vice versa?”. A
reflexão é bastante pertinente, as relações entre casais héteros estão quase
sempre fundamentadas na construção convencional de família, homem, mulher e
filhos. E a demonstração de virilidade se processa a partir da capacidade de
gerar filhos biológicos. Lamentavelmente, alguns homens encontram uma relação
diretamente proporcional entre número de filhos e virilidade, quanto maior uma
tanto maior a outra. Estou casada há quase 17 anos e porque ainda não nos décimos
por ter filhos já fomos discriminados várias vezes. As ofensas vão desde dizerem
que meu marido tem o “ovo goro”, expressão de extremo mal gosto, até dizerem
que ele não “faz menino” que precisa “trabalhar menos e assistir menos TV”. Nunca
passou pela cabeça dessas pessoas que não ter filhos pode ser uma opção
consciente, sem traumas e dramas.
Apesar
disso, persiste a ideia de que o homem só se torna homem de verdade depois de se tornar pai. E pra isso ele utiliza de várias artimanhas, muitas delas
violentas, pra submeter a fêmea a sua vontade, desde proibi-la de usar
anticoncepcionais até ameaça-la de divórcio. Não obstante, as mulheres que não podem
gestar são abandonadas pelo marido em troca da amante grávida ou que já lhe deu
filho biológico. Só no meu convívio conheço 03 casos.
Bem, aí eu me pergunto, até que ponto a cultura patriarcal influi numa relação que por si só rompe com esse sistema? É quase impossível chegar a um consenso sobre essa questão. Se por um lado o casal rompe todos os preconceitos numa relação homoafetiva pouco provável, por outro, continua a reproduzir o sistema de opressão características dos casais héteros, a gestação como um ponto fundamental da relação e a imposição de filhos necessariamente biológicos. Entretanto, como negar a qualquer casal o direito de terem seus filhos biológicos, já que isso é possível? Também não se pode excluir o direito que alguém tem de realizar os sonhos do parceiro, afinal, quando luto contra a opressão, significa que seria contra toda e qualquer opressão, inclusive contra a tentativa de negar o direito de alguém de praticar a eutanásia.
Bem, aí eu me pergunto, até que ponto a cultura patriarcal influi numa relação que por si só rompe com esse sistema? É quase impossível chegar a um consenso sobre essa questão. Se por um lado o casal rompe todos os preconceitos numa relação homoafetiva pouco provável, por outro, continua a reproduzir o sistema de opressão características dos casais héteros, a gestação como um ponto fundamental da relação e a imposição de filhos necessariamente biológicos. Entretanto, como negar a qualquer casal o direito de terem seus filhos biológicos, já que isso é possível? Também não se pode excluir o direito que alguém tem de realizar os sonhos do parceiro, afinal, quando luto contra a opressão, significa que seria contra toda e qualquer opressão, inclusive contra a tentativa de negar o direito de alguém de praticar a eutanásia.
Mas, para além do modelo patriarcal há também as condições objetivas do casal e do meio no qual ele esta inserido. Ficou claro, como bem salientou o Alexis, as sociedades, seja ela brasileira,
americana, indiana ou argentina, não evoluiu o suficiente pra perceber que o
modelo convencional de família há tempos mudou, e apesar disso, a sociedade argentina e outras continuam impondo barreiras a adoção de de crianças por famílias que destoam do modelo convencial. Além do que, a
situação financeira do casal seria mais um entrave caso o casal
optasse pela adoção.
Não tenho mais argumentos para justificar o quanto é cruel a opressão contra as pessoas que não seguem os padrões convencionais. No entanto, me sinto
bastante confortável para lamentar a situação que envolve esse casal, mais
vítima extrema dessa sociedade castradora do que protagonista de suas próprias
vidas. Alexis sequer teve respeitado o direito de ser reconhecido como
homem, como também de exercer sua profissão por conta do preconceito. Lamento
que as condições objetivas levem Karen, ou outra mulher qualquer, a recorrer à
prostituição como meio de garantir sua subsistência e de sua família.
2 comentários:
soU UM HOMEM TRANS E SEI O QUANTO É HORROSA A IDEIA DE SER PAI BIOLÓGICO NESSA SOCIEDADE, NÃO PELO FATO DE GESTAR É PELO PRECONCEITO E PELA SUBVERSÃO DA NOSSA IDENTIDADE DE GÊNERO, ORA, SE QUISESSE PARIR QUE CONTINUASSE MULHER?! É ASSIM QUE FALAM DE NÓS, NOS OLHAM DIFERENTES O TEMPO TODO, NÃO RESPEITAM NOSSO CORPO E PARTICULARIDADES...EU ESTOU CADA VEZ MAIS DECEPCIONADO COM A SOCIEDADE, MAS, NÃO DEIO NINGUÉM PASSAR POR CIMA DOS MEUS DIREITOS...OTIMO TEXTO...
Ótimo texto. Sensacional mesmo. Só tenho uma pequena observação: "numa relação homoafetiva". Eles não tem uma relação homo, e sim hetero, já que são um homem e uma mulher.
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