O
que é ser mulher?
Ser
mulher é nascer contra a vontade do pai que queria um companheiro para o futebol,
para as pescarias, as farras com a “meninas”... Ser mulher é aprender desde
cedo que desconhecer o próprio corpo é regra, mesmo sem saber o motivo de não
poder explora-lo. Ser mulher é ser condicionada desde a infância, a fazer
comida, cuidar dos filhos, arrumar a casa... Aprender inclusive a reclamar de
fazer isso tudo ao hipotético marido, porem, sem se rebelar. Pertencer ao sexo
feminino é compreender que coisas divertidas são exclusivas de meninos e que jogos
que estimulam criatividade, a inteligência e são encorajadores, portanto, não servem
para meninas.
Nossos
brinquedos não estimulam a competitividade saudável, pelo contrário, somos
estimuladas a brincadeiras monótonas, de comadres ou de conversas. Enquanto isso,
os meninos competem o tempo inteiro e quase sempre trabalham em equipe. Eles se
associam pra lutarem em grupos, eles montam coisas juntos, enquanto nossas
brincadeiras são tão enfadonhas que quase sempre terminam em brigas. A gente
vai crescendo um pouco inimiga uma das outras, porque é difícil estabelecer
cumplicidade a partir de brincadeiras que não nos estimulam a pensar no outro
como cúmplice, como alguém que vai nos ajudar a vencer uma guerra (seja um cabo
de força ou montar uma cidade de Lego). A gente resta comparar qual comida
imaginária é mais gostosa, qual boneca tem o vestido mais bonito ou qual
casinha esta mais arrumada.
Já
no final dos anos 70 e por quase toda a década de 80, nós meninas, tínhamos um
pouco mais de liberdade, poderíamos ousar, através dos jogos de carimba ou
queimada (como chamam no Rio) ou do vôlei. Mas eram poucas as brincadeiras em
que as meninas tinham oportunidade de exercitarem a cumplicidade, o trabalho em
equipe. A maioria das nossas experiências lúdicas estimulava o trabalho
solitário. A gente quase sempre estava em verdadeiros embates, umas contra as
outras. Apesar disso, sinto saudade daquele tempo, a gente tinha mais liberdade
e mais criatividade, e quem era um pouco mais afoita podia se aventurar no
universo masculino. Eu jogava futebol, bola de gude, pescava, competia em
trilha radical de bicicleta. Mas fazia isso tudo sem o conhecimento dos meus
avós (morava com eles). No entanto, não escapei aos olhos dos vizinhos, eles
diziam que era sapatão ou ia ser puta mesmo, e eu ainda deveria ter no máximo
12 anos.
Aos 13
anos fiz a primeira eucaristia e durante os estudos sobre a bíblia me disseram
que a masturbação me mandaria pra o inferno, me disseram também que eu não
poderia fazer sexo antes do casamento porque isso também me mandaria pra o inferno.
Então, ainda aos 12 anos, minha avó (morava com meus avós) iniciou a minha
educação sexual, ela me informou que eu não poderia deixar que nenhum menino
tivesse qualquer “liberdade” comigo, que eu me desse ao respeito e a principal
informação que ela me deu, sobre sexualidade, foi que se eu engravidasse ela me
mataria de “porrada” e ainda me mandaria embora de casa.
Com o
pessoal do bairro aprendi que menina que ficava com muitos meninos era puta e
que menino que ficava com muitas meninas era “o gostosão”. Também aprendi que
não poderia “dar” pra meu namorado por que também me tornaria puta. Mas infelizmente,
não me disseram que o menino insistiria em transar comigo e que ele desenvolveria
mil mãos e que eu iria gostar de ter essas mãos passeando sobre meu corpo. Também
não me contaram como fazer pra apagar esse fogo que me fazia desejar essas mãos
e como controlar as mãos e os desejos do menino.
Minha
família e todo mundo que eu conhecia estimulava as meninas a casarem, enquanto
desestimulavam os meninos. A menina deveria casar cedo, o quanto antes melhor,
enquanto os meninos nunca estavam prontos pra um compromisso tão sério. Acho que
alguma coisa não iria dar certo, deveríamos casar entre nós meninas? Também nos
ensinaram que deveríamos respeitar o namorado ou marido e compreender que eles
têm “necessidades especiais” (leia-se liberdade sexual). Depois, aprendemos que
mulher que trai o parceiro, seja por que motivo for ou sob qualquer circunstância,
é puta, já o homem que trai a parceira sabe como é... é homem.
Lembra
que falei que somos estimuladas a competirmos entre nós meninas? A gente
aprende tão bem essa estratégia que quando o cara nos trai a gente põe a culpa
na amante, que às vezes nem sabe que o cara é casado ou tem namorada. A partir
dessa competição a gente passa a considerar qualquer mulher uma ameaça ao nosso
relacionamento, que a gente chega a proteger quase com a própria vida.
E a gente
ainda faz cada coisa estranha para arrumar um marido. Fazemos simpatias,
macumbas, colocamos santos de cabeça para baixo, procuramos cartomantes que prometem
trazer “o homem da nossa vida de volta”, tudo isso pra arrumar ter um homem ao
nosso lado. Mas será que vale a pena ter alguém do nosso lado contra própria vontade?
Parece que sim, pelo menos aquela amiga – que não é nem tão amiga assim – não vai
nos chamar de encalhada.
Também
fazemos todo tipo de tratamento pra engravidarmos, porque aprendermos que a
mulher só se realiza se for mãe, e não importa o quão doloroso ou humilhante
for esse tratamento. Lembrei de outra coisa – recorda que disse que não poderíamos
sequer nos masturbarmos? – pois é, depois que a gente casa, devemos ter
orgasmos múltiplos. Agora só me explica uma coisa; como a gente vai saber gozar
com o parceiro se a gente nem tem ideia de como fazer isso sozinha?
É bem
vasta cultura sexista e potentes os discursos machista que vão sendo usados pra
nos condicionar, e nós vamos aceitando sem questionarmos. Por isso a ideologia
patriarcal vai sendo reproduzida e propagada indiscriminadamente. No entanto,
chega um momento em que a fôrma que produziram pra gente não nos cabe mais. Na verdade,
nunca nos coube, nos esforçamos pra entrar nela por medo e por imaturidade, até
que por fim, nos rebelamos. Então nos percebemos oprimidas, o que
invariavelmente nos leva a refletir seriamente sobre essa sociedade, feita para
os homens e controlada por eles.
Porem,
não há sexismo que consiga controlar todas as mulheres por todo o tempo, muitas
de nos se rebela e não se deixa subjugar. Alguns segmentos da sociedade já compreendeu
que não dá mais pra pensar a sociedade a partir de coisas exclusivas pra
meninas e/ ou pra meninos. A propaganda
abaixo é um exemplo de quebra de paradigmas. Assista e avalie.
Mas acredito que a gente ainda vai tornar todas as sociedades igualitárias. Afinal, somos fortes e somos muitas.
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