terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ser mulher numa sociedade patriarcal



O que é ser mulher?

Ser mulher é nascer contra a vontade do pai que queria um companheiro para o futebol, para as pescarias, as farras com a “meninas”... Ser mulher é aprender desde cedo que desconhecer o próprio corpo é regra, mesmo sem saber o motivo de não poder explora-lo. Ser mulher é ser condicionada desde a infância, a fazer comida, cuidar dos filhos, arrumar a casa... Aprender inclusive a reclamar de fazer isso tudo ao hipotético marido, porem, sem se rebelar. Pertencer ao sexo feminino é compreender que coisas divertidas são exclusivas de meninos e que jogos que estimulam criatividade, a inteligência e são encorajadores, portanto, não servem para meninas. 

Nossos brinquedos não estimulam a competitividade saudável, pelo contrário, somos estimuladas a brincadeiras monótonas, de comadres ou de conversas. Enquanto isso, os meninos competem o tempo inteiro e quase sempre trabalham em equipe. Eles se associam pra lutarem em grupos, eles montam coisas juntos, enquanto nossas brincadeiras são tão enfadonhas que quase sempre terminam em brigas. A gente vai crescendo um pouco inimiga uma das outras, porque é difícil estabelecer cumplicidade a partir de brincadeiras que não nos estimulam a pensar no outro como cúmplice, como alguém que vai nos ajudar a vencer uma guerra (seja um cabo de força ou montar uma cidade de Lego). A gente resta comparar qual comida imaginária é mais gostosa, qual boneca tem o vestido mais bonito ou qual casinha esta mais arrumada.

Já no final dos anos 70 e por quase toda a década de 80, nós meninas, tínhamos um pouco mais de liberdade, poderíamos ousar, através dos jogos de carimba ou queimada (como chamam no Rio) ou do vôlei. Mas eram poucas as brincadeiras em que as meninas tinham oportunidade de exercitarem a cumplicidade, o trabalho em equipe. A maioria das nossas experiências lúdicas estimulava o trabalho solitário. A gente quase sempre estava em verdadeiros embates, umas contra as outras. Apesar disso, sinto saudade daquele tempo, a gente tinha mais liberdade e mais criatividade, e quem era um pouco mais afoita podia se aventurar no universo masculino. Eu jogava futebol, bola de gude, pescava, competia em trilha radical de bicicleta. Mas fazia isso tudo sem o conhecimento dos meus avós (morava com eles). No entanto, não escapei aos olhos dos vizinhos, eles diziam que era sapatão ou ia ser puta mesmo, e eu ainda deveria ter no máximo 12 anos.
 
Aos 13 anos fiz a primeira eucaristia e durante os estudos sobre a bíblia me disseram que a masturbação me mandaria pra o inferno, me disseram também que eu não poderia fazer sexo antes do casamento porque isso também me mandaria pra o inferno. Então, ainda aos 12 anos, minha avó (morava com meus avós) iniciou a minha educação sexual, ela me informou que eu não poderia deixar que nenhum menino tivesse qualquer “liberdade” comigo, que eu me desse ao respeito e a principal informação que ela me deu, sobre sexualidade, foi que se eu engravidasse ela me mataria de “porrada” e ainda me mandaria embora de casa.

Com o pessoal do bairro aprendi que menina que ficava com muitos meninos era puta e que menino que ficava com muitas meninas era “o gostosão”. Também aprendi que não poderia “dar” pra meu namorado por que também me tornaria puta. Mas infelizmente, não me disseram que o menino insistiria em transar comigo e que ele desenvolveria mil mãos e que eu iria gostar de ter essas mãos passeando sobre meu corpo. Também não me contaram como fazer pra apagar esse fogo que me fazia desejar essas mãos e como controlar as mãos e os desejos do menino.

Minha família e todo mundo que eu conhecia estimulava as meninas a casarem, enquanto desestimulavam os meninos. A menina deveria casar cedo, o quanto antes melhor, enquanto os meninos nunca estavam prontos pra um compromisso tão sério. Acho que alguma coisa não iria dar certo, deveríamos casar entre nós meninas? Também nos ensinaram que deveríamos respeitar o namorado ou marido e compreender que eles têm “necessidades especiais” (leia-se liberdade sexual). Depois, aprendemos que mulher que trai o parceiro, seja por que motivo for ou sob qualquer circunstância, é puta, já o homem que trai a parceira sabe como é... é homem.  

Lembra que falei que somos estimuladas a competirmos entre nós meninas? A gente aprende tão bem essa estratégia que quando o cara nos trai a gente põe a culpa na amante, que às vezes nem sabe que o cara é casado ou tem namorada. A partir dessa competição a gente passa a considerar qualquer mulher uma ameaça ao nosso relacionamento, que a gente chega a proteger quase com a própria vida.

a gata borralheira cinderela
E a gente ainda faz cada coisa estranha para arrumar um marido. Fazemos simpatias, macumbas, colocamos santos de cabeça para baixo, procuramos cartomantes que prometem trazer “o homem da nossa vida de volta”, tudo isso pra arrumar ter um homem ao nosso lado. Mas será que vale a pena ter alguém do nosso lado contra própria vontade? Parece que sim, pelo menos aquela amiga – que não é nem tão amiga assim – não vai nos chamar de encalhada.

Também fazemos todo tipo de tratamento pra engravidarmos, porque aprendermos que a mulher só se realiza se for mãe, e não importa o quão doloroso ou humilhante for esse tratamento. Lembrei de outra coisa – recorda que disse que não poderíamos sequer nos masturbarmos? – pois é, depois que a gente casa, devemos ter orgasmos múltiplos. Agora só me explica uma coisa; como a gente vai saber gozar com o parceiro se a gente nem tem ideia de como fazer isso sozinha?

É bem vasta cultura sexista e potentes os discursos machista que vão sendo usados pra nos condicionar, e nós vamos aceitando sem questionarmos. Por isso a ideologia patriarcal vai sendo reproduzida e propagada indiscriminadamente. No entanto, chega um momento em que a fôrma que produziram pra gente não nos cabe mais. Na verdade, nunca nos coube, nos esforçamos pra entrar nela por medo e por imaturidade, até que por fim, nos rebelamos. Então nos percebemos oprimidas, o que invariavelmente nos leva a refletir seriamente sobre essa sociedade, feita para os homens e controlada por eles. 
Porem, não há sexismo que consiga controlar todas as mulheres por todo o tempo, muitas de nos se rebela e não se deixa subjugar. Alguns segmentos da sociedade já compreendeu que não dá mais pra pensar a sociedade a partir de coisas exclusivas pra meninas e/ ou pra meninos.  A propaganda abaixo é um exemplo de quebra de paradigmas. Assista e avalie.

Mas acredito que a gente ainda vai tornar todas as sociedades igualitárias. Afinal, somos fortes e somos muitas.


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